O princípio da igualdade na relação do homem com os animais

AutorRaul Tavares
CargoMestrando em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Páginas221-248

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1. Introdução

A utilização de animais pelo homem, seja na alimentação, no entretenimento, ou em qualquer outra atividade, é uma prática bastante antiga e considerada, por muitos, inofensiva. A crença de que os animais não têm alma e que são incapazes de sentir prazer ou dor justifica, há bastante tempo, uma relação de indiferença ao sofrimento de milhares de criaturas que são mortas diariamente para satisfazer os interesses e caprichos da espécie humana.

Enquanto alguns animais são tratados como membros da família e possuem um tratamento melhor do que muitos seres humanos, outros, na maioria das vezes os mais frágeis e dóceis para com o homem, são tratados como coisas destituídas de qualquer sensibilidade ou consciência de si. As tradições culturais são reiteradamente utilizadas para justificar práticas desumanas, que desafiam o sentimento de justiça e qualquer ideia de humani-dade. Enquanto isso, o direito e as leis apenas oficializam uma relação desigual, onde interesses humanos menos relevantes, como a estética, a moda e a gastronomia, são colocados em um patamar superior a interesses fundamentais, como a aversão à dor e o interesse à vida.

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Se nenhum ser vivo é completamente independente do meio em que vive, descobrir qual o sentido da vida humana significa também descobrir qual o papel do homem no mundo e qual a sua relação com os outros seres que o acompanham neste mundo. É claro que os animais possuem características e prioridades distintas e devem, portanto, ser tratados de forma diferente, na medida de suas necessidades. Um cão, por exemplo, não precisa apreender a se vestir ou votar nas eleições.

No entanto, alguns interesses como o interesse à vida, ao bem-estar, ao não-sofrimento e muitos outros são compartilhados pela imensa maioria dos seres vivos, não havendo, a priori, nenhuma justificativa para se tratar desigualmente interesses que são substancialmente iguais. O princípio da igualdade surge, aqui, como a pedra de toque de uma nova forma de ver, sentir e se relacionar com o mundo, que traz em si a semente de uma nova ética, aplicável não só aos seres humanos, mas também a todas as entidades vivas.

2. O antropocentrismo na Grécia antiga

Na Grécia Antiga, o advento da filosofia colocou a razão em um papel de destaque na busca pelo conhecimento, e o homem, considerado o único ser racional, adquiriu um status quase que divino na sua relação com a natureza e com os demais seres vivos. Em sua maioria, os filósofos gregos acreditavam na nature-za como um bem a serviço exclusivamente da espécie humana1.

Como dizia Protágoras de Abdera, filósofo sofista, especialista na arte da retórica e do discurso, o homem seria a medida de todas as coisas.

Partindo da ideia de que a razão deveria reinar sobre os instintos e desejos do homem, Platão formulou um modelo de sociedade, onde os indivíduos mais racionais deveriam controlar e exercer um domínio sobre os menos racionais. Para Platão, os animais não-humanos e as plantas possuíam apenas uma alma

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primitiva, localizada na região do tórax, enquanto a alma racional seria um privilégio exclusivo da espécie humana, com exceção das mulheres, escravos e crianças. Segundo ele: "Ao tirar a vida de um ser humano causamos fúria em Deus, mas tirando a vida de um animal causamos fúria somente ao seu dono.2"

Deus estaria, assim, de olhos fechados para a vida e sofrimento animal.

Aristóteles, discípulo de Platão e considerado um dos maiores pensadores de todos os tempos, reconhecia a natureza animal do homem3, mas também enxergava a razão como um atributo exclusivamente humano4. Para ele, a felicidade estava na virtude e na vida contemplativa, o que seria impossível para um simples animal. Defensor da escravidão natural e da superioridade do homem sobre a mulher, Aristóteles acreditava na existência de três tipos de almas: a vegetativa, a sensitiva e a intelectual. Enquanto os vegetais teriam apenas uma alma vegetativa, responsável pela nutrição e pelo crescimento, os animais teriam também uma alma sensitiva, responsável pela percepção, e somente o homem teria uma alma intelectual, responsável pela linguagem5e pelo senso de justiça.

Apesar de reconhecer que os animais tinham capacidade de sentir prazer ou dor e também de expressar esses sentimentos através da voz, Aristóteles não considerava a senciência um atributo tão relevante a ponto de conceder um valor moral aos animais não-humanos. A existência animal em Aristóteles só tinha sentido na sua relação com a existência humana6. Assim como a alma reina sobre o corpo, o homem deveria reinar sobre os escravos e animais, e mesmo os animais domésticos, de natureza superior, estariam em melhor condição se estivessem a serviço da espécie humana. Aristóteles, no entanto, desafia a noção dos animais como máquinas insensíveis ao prazer e à dor e reconhece que a amizade, para ele mais importante do que a própria justiça, não é um sentimento exclusivamente humano, podendo ser encontrada também nos pássaros e na maioria dos animais7.

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3. A cultura judaico-cristã

A crença judaico-cristã de que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus e que deveria dominar sobre os outros seres vivos também serviu, durante muito tempo, de justificativa para excluir os animais de uma esfera de consideração moral. Segundo Santo Agostinho, alguns objetos, como dinheiro e comida, tinham uma importância maior do que a vida de um animal8. Para ele, a passagem do evangelho de São Marcos, onde Jesus tira os espíritos malignos de um homem e os coloca numa manada de porcos, que em seguida morre afogada, seria uma evidência da superioridade humana e da irrelevância moral dos animais não-humanos.

Para Tomás de Aquino, haveria uma ordem hierárquica na natureza, onde o homem ocuparia o posto mais elevado na grande cadeia da vida9. Tal qual Aristóteles, Aquino também acreditava que as plantas foram feitas para servir de alimento para os animais e os animais de alimento para o homem. Como não há pecado em usar algo para o fim que se destina, não have-ria mal algum em matar um animal não-humano, pois servir de alimento seria inerente à própria natureza do animal.

Convém salientar, entretanto, que a opinião de alguns teólogos cristãos contemporâneos não se coaduna mais com essa tradição antropocêntrica da Igreja Católica. O sentido da palavra dominar não é mais visto como uma licença irrestrita para a exploração, mas sim para uma relação de respeito e cuidado. O homem seria, assim, não o algoz, mas o jardineiro do Éden, responsável por cuidar e proteger a natureza e todas as suas manifestações.10

Segundo Nancy Mangabeira Unger11, o domínio sobre a natureza na Bíblia se refere ao domínio sobre os próprios impulsos destrutivos e autodestrutivos da espécie humana. Na mitologia grega, os deuses puniam a voracidade e a desmesura do homem enviando a ele a deusa Até, a cega loucura, deusa de pés macios, pois pisa apenas sobre a cabeça dos mortais. A partir daí, inicia-

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se na vida do homem condicionado um processo fatal e irreversível de autodestruição, que se dá como uma consequência natural de seus próprios atos. Esta analogia pode ser muito bem utilizada para ilustrar a situação atual do homem no mundo, que ao contribuir para a destruição do planeta, põe em risco a sua própria sobrevivência como espécie.

4. O pensamento cartesiano

Duas ideias são fundamentais para compreender o pensamento cartesiano. Primeiro, a visão mecanicista do mundo, que considera o universo como uma máquina destituída de qualquer intencionalidade, e que serviu para legitimar uma relação com a natureza altamente predatória. Segundo, a ideia de que os animais não tinham alma, o que seria uma das principais razões pelas quais o sentimento de culpa não acompanha o homem quando ele tira a vida ou submete um animal a algum sofrimento.

Para Descartes, o universo seria exatamente como uma máquina, o que se aplicaria tanto ao corpo humano como ao corpo de um animal. A razão e a linguagem, no entanto, manifestações típicas da alma, dariam uma dignidade maior à espécie humana.12Segundo Descartes, os animais não passavam de autômatos sem nenhuma capacidade de sentir prazer ou dor13. O som emitido por um animal em situação de aparente sofrimento não seria diferente do som emitido por um instrumento musical, como uma gaita de fole, por exemplo14. Cristão convicto, atribuir uma alma aos animais não-humanos, para Descartes, seria um pecado tão grave quanto negar a existência de Deus15. Segundo ele, os animais não tinham alma por um motivo muito simples: eles não pensam, e o pensamento seria a função principal da alma16.

No que toca à relação do homem com o mundo animal, o pensamento cartesiano não encontrou nenhuma resistência na Igreja Católica. O fato de Descartes ter considerado a alma uma característica exclusiva do homem foi de fundamental impor-

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