O princípio da primazia da realidade
Autor | Américo Plá Rodriguez |
Páginas | 339-389 |
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o principio da primazia da realidade significa que, em caso de discordância entre o que ocorre na prâtica e o que emerge de documentos ou acordos, deve-se dar preferência ao primeiro, isto ê, ao que sucede no terreno dos fatos.
Geralmente esta idéia se menciona com a expressâo cunhada por De La Cueva, que sustenta que o contrato de trabalho é um contrato-realidade.
Mas, a rigor, essa expressão foi usada por De La Cueva com um sentido algo diferente, vinculado à concepção da relação de trabalho que expõe, se bem que também lhe atribua o significado que, no momento, estamos definindo.
Com efeito, ao estudar a naturezajurídica do contrato de trabalho, dedica uma boa parte de sua exposição à teoria da relação de trabalho, que extrai de Malitar e que resume, no essencial, nestes parágrafos:
"Existe, por conseguinte, uma diferença essencial entre o contrato de trabalho e os contratos de direito civil. Nestes, a produção dos efeitos jurídicos e a aplicação do direito somente dependem do acordo de vontades, enquanto no de trabalho é necessário o cumprimento mesmo da obrigação contraída; donde se deduz que no direito civil o contrato não está ligado a seu cumprimento, enquanto que no do trabalho não fica completo senão através de sua execução.
"Essa diferença explica a necessidade de distinguir o contrato da relação de trabalho e que o primeiro, ou seja, o simples acordo de vontades para a prestação de um serviço, não seja se-
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não a condição para que o trabalhador, como disse Malitar, fique vinculado na empresa do patrão, vínculo que, por sua vez, determina a formação da relação de trabalho e, conseqüentemente, a produção dos efeitos normais que o Direito do Trabalho atribui, menos ao contrato do que à prestação do serviço.
"A doutrina, salvo raras exceções, entre as quais além de Molitor se pode citar O. Scelle, não se fixou nessa característica do contrato de trabalho, que o distingue dos contratos de direito civil, e não se deu conta de que somente fica completo o primeiro pelo fato real de seu cumprimento, e de que é a prestação do serviço, e não o acordo de vontades, o que faz que o trabalhador se encontre amparado pelo Direito do Trabalho; ou, dito em outras palavras, a prestação do serviço é a hipótese ou pressuposto necessário para a aplicação do Direito do Trabalho"495.
E, depois de explicar o alcance dessa concepção, acrescenta:
"A existência de uma relação de trabalho depende, em conseqüência, não do que as partes tiverem pactuado, mas da situação real em que o trabalhador se ache colocado, porque, como diz Scelle, a aplicação do Direito do Trabalho depende cada vez menos de uma relação jurídica subjetiva do que de uma situação objetiva, cuja existência é independente do ato que condiciona seu nascimento. Donde resulta errôneo pretender julgar a natureza de uma relação de acordo com o que as partes tiverem pactuado, uma vez que, se as estipulações consignadas no contrato não correspondem à realidade, carecerão de qualquer valor.
"Em razão do exposto é que o contrato de trabalho foi denominado contrato-realidade, posto que existe não no acordo abstrato de vontades, mas na realidade da prestação do serviço, e que é esta e não aquele acordo que determina sua existência.
"As idéias expostas foram sustentadas pela primeira vez entre nôs pelo douto Alfredo /iíarritu, Ministro da Suprema Corte de Justiça, no Conflito n. 133-36, suscitado entre a Junta Federal de Conciliação e Arbitragem e o do 10 2 Juízo Civil da cidade do México, para conhecer reclamação apresentada por José Molina tlernández contra a Cia. Mexicana de Petróleo EI
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Aquila S.A. Nesse conflito de competência o Ministro lfiarritll usou também, pela primeira vez entre nós, o termo contratorealidade. O Pleno da Corte não soube, contudo, dar-se conta do problema suscitado, nem houve sequer Ministro que respondesse às observações do Dr. lfiarritll" 496.
Posteriormente, ao resumir as conclusões do capítulo, exprime no item 4°: "O contrato de trabalho, em sua acepção de relação de trabalho, é um contrato-realidade, posto que existe nas condições reais de prestação dos serviços, independentemente do que tenha sido pactuado, com a limitação, que não é demais mencionar, de que essas condições não poderão reduzir os privilégios que se contenham na lei, na convenção ou no contrato coletivo"497.
Uma leitura atenta desses parágrafos - que quisemos reproduzir textualmente para assegurar a fidelidade da transcrição - demonstra que neles se encerram várias idéias afins, porém distinguíveis.
A primeira é que para pretender a proteção do Direito do Trabalho não basta o contrato, mas requer-se a prestação efetiva da tarefa, a qual determina aquela proteção, ainda que o contrato seja nulo ou inexistente. Esta é a idéia básica encerrada na noção de relação de trabalho.
Estreitamente ligada a esse sentido, porém enfocando-o de ãngulo diverso, está a explicação que vincula esta característica com a classificação dos contratos, dado que o contrato de trabalho deixaria de ser consensual a partir do momento em que, para surgir, não bastasse o simples acordo de vontades.
Uma segunda idéia é a de que, em matéria trabalhista, há de primar sempre a verdade dos fatos sobre os acordos formais. Este segundo sentido fica especialmente manifesto na frase que considera "errõneo pretender julgar a natureza de uma relação de acordo com o que as partes tenham pactuado, uma vez que, se as estipulações consignadas não correspondem à realidade, carecerão de qualquer valor".
Em que pese essa pluralidade de significados, a maioria dos autores que se referiam a essa expressão de De La ClIeva lhe atri-
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bui o primeiro sentido. Alguns, como Iíroloschin 498, a vincularam à classificação dos contratos. Outros, como Deveali 499, Pozzo 500,
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Férez Fatlon 501, Caldera 502, Cesaríno Jr. 503, Maranhão 504, Cabanellas 505 e Martins Catharíno 506, ajungem à noçào de relação
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de trabalho. Inclusive Orlando Oomes507 e De rerrar508, que criticam abertamente a expressão, aludem a este primeiro sentido.
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Ao contrário, na prática jurisprudenciaL é freqüente utilizar a expressão contrato-realidade no segundo sentido, isto é, aquele no qual nós consubstanciamos o enunciado deste princípio.
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De qualquer modo, esta ambivalência da expressão nos leva a pensar que, embora se continue utilizando na prática a referida locução nesse sentido, graças a sua brevidade, sua clareza e capa-
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cidade evocativa, no terreno doutrinário, torna-se preferível referir-nos ao princípio da primazia da realidade.
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Dessa maneira, evitaremos não apenas a confusão entre ambos os sentidos, mas também que a discrepãncia com a concep-
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ção anterior leve a crítica deste segundo conceito, como ocorreu com De f'errari que, levado por seu impulso crítico, transportou sua opinião divergente do primeiro para o segundo sentido, a respeito do qual parece haver um consenso doutrinário praticamente totaL se descartarmos esta exceção.
No particular, cumpre assinalar que os mesmos autores que, ao exporem a teoria do contrato-realidade em seu primeiro sentido, a criticaram, aceitam a idéia encerrada no segundo sentidoque é de muito maior vigência prática - ainda que para localizá-la no estudo da simulação ou das nulidades no contrato de trabalho não utilizem, em geraL a denominação a que nos referimos.
Caldera diz: "É, pois, o fato real que apareça das relações verdadeiramente existentes, o que se deve procurar sob a aparência, muitas vezes simulada, de contratos de direito comum, civil ou comercial"509.
Arnaldo Süssekind afirma: "A regra que prevalece no Direito do Trabalho ê a da nulidade absoluta do ato anormal praticado com o intuito de evitar a aplicação das normas jurídicas de proteção ao trabalho. Sempre que possível, desde que da lei não resulte solução diversa, a relação de emprego deve prosseguir como se o referido ato não tivesse sido praticado; em caso contrário, deve ser reparado, nos limites da lei trabalhista, o dano oriundo do ato malicioso. Ocorrendo simulação atinente ã relação de trabalho...
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