O Princípio da Legalidade, as Mudanças Havidas no Código de Processo Penal e a Necessidade de Alteração do Procedimento Relativo aos Atos Infracionais

AutorGuilherme Madeira Dezem
Páginas367-373

Page 367

1. Introdução

O procedimento relativo à apuração do ato infracional para aplicação de medidas socioeducativas contém peculiaridades que o afastam do Direito Processual Penal puro.

No entanto, apesar destas peculiaridades, é importante que não se perca de vista o princípio da legalidade previsto na Convenção de Riad e positivado na Lei do Sinase: o adolescente não poderá ter tratamento mais severo do que o adulto.

As reformas ocorridas no Código de Processo Penal a partir de 2008 não foram, contudo, adequadamente incorporadas no procedimento do ato infracional notadamente à luz do princípio da legalidade.

Este artigo objetiva analisar as mudanças ocorridas na legislação processual penal e seu necessário impacto no Estatuto da Criança e do Adolescente à luz do princípio da legalidade, discutindo sobre como a jurisprudência tem se posicionado.

2. Princípio da proteção integral

A Constituição, em especial no art. 227, transformou a antiga rotina das crianças em “situação irregular” para construir a moderna doutrina da “proteção integral”, em que, de fato, as crianças passaram a ser sujeitos de direitos, e não meros espectadores dos deslindes do Estado sobre suas vidas.

Nessa linha de pensamento, em 1990, veio a Lei Federal n. 8.069/90Estatuto da Criança e do Adolescente —, reconhecendo o princípio da proteção integral já em seu art. 1º: “Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”. A criança e o adolescente passam, então, de objetos do Direito a sujeitos de direitos, tornandose “protagonistas de seus próprios direitos”.

Esses três diplomas legais — a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Convenção Sobre os Direitos da Criança — compuseram valioso instrumental jurídico para a proteção da criança e do jovem, possibilitando que venha a

Page 368

existir a diminuição das mazelas que afligem essa vulnerável parcela da população.

Nesse sentido, Wilson Liberati1 acentua a mudança de enfoque, em que as normas destinadas à infância e adolescência deixam de ser destinadas a uma única categoria de infante, abrangendo, agora, todas as crianças e todos os adolescentes, que, por sua vez, devem ter todos os seus direitos assegurados: “[...] a Doutrina da Proteção Integral preconiza que o direito da criança não deve e não pode ser exclusivo de uma ‘categoria’ de menor, classificado como ‘carente’, ‘abandonado’ ou ‘infrator’, mas deve dirigir-se a todas as crianças a todos os adolescentes, sem distinção. As medidas de proteção devem abranger todos os direitos proclamados pelos tratados internacionais e pelas leis internas dos Estados”.

Na perspectiva da Proteção Integral, observa-se ainda o desaparecimento de parte dos conceitos vagos e indeterminados, bastante presentes nas legislações anteriores, fato que gerava enorme insegurança jurídica, dando margem para diversas arbitrariedades das autoridades estatais competentes.

Por fim, convém mencionar que, no âmbito internacional, a Doutrina da Proteção Integral somente consagrou-se com o advento da Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança em 1989, atualmente ratificada por vários países-membros da ONU.

3. Princípio da legalidade

Inerente ao Estado Democrático de Direito, o princípio da legalidade significa, de forma abrangente, que somente se pode fazer ou deixar de fazer algo em conformidade com o comando normativo vigente. Inspirado no art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal, que define que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, o Estatuto da Criança e do Adolescente, previu, no art. 103, que é considerado “ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal”.

O SINASE (lei que regulamenta as medidas socioeducativas) traz o princípio expresso em seu art. 35. I, com significado além do usual:

Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios:

I — legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto.

Por se tratar de subsistema normativo especial, importa observar que a restrição de tratamento mais gravoso não gera direito ao adolescente de obter benefícios tais como os previstos na legislação penal, como indulto, livramento condicional etc.

Em suma, tendo em vista o princípio da legalidade em conjunto com o princípio da proteção integral, o sistema da infância e da juventude jamais poderá dar tratamento mais rigoroso para o adolescente quando comparado com o tratamento dispensado aos adultos.

3. Fase judicial do procedimento para apuração de ato infracional

Primeiro, façamos uma breve análise da fase processual para a apuração de ato infracional. A fase judicial do procedimento para apuração ao ato infracional vem disciplinada nos arts. 182 ao 188 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Uma vez que o ECA não é absolutamente minucioso, foi estabelecido no art. 152, caput, que deverá ser aplicado subsidiariamente o Código de Processo Penal.

A representação é a peça que inicia a fase judicial, sendo a peça em que constará a imputação ao adolescente. A Representação independe de prova pré-constituída de autoria e materialidade, nos termos do art. 182, § 2º, ECA.

O juiz, ao receber a representação, irá designar a audiência de apresentação, deverá decidir sobre a manutenção ou decretação da internação provisória do adolescente, nos termos do art. 184 do ECA.

Ainda, deverá o magistrado determinar a cientificação dos pais ou do responsável e do adolescente. Caso os pais não sejam encontrados, então o juiz deverá nomear curador especial, nos termos do art. 184, § 2º, ECA. Caso o adolescente não seja encontrado, então o juiz determinará a suspensão

Page 369

do processo e determinará a expedição de mandado de busca e apreensão, nos termos do art. 184, § 3º, ECA.

Realizada a cientificação nos termos acima indicados, deverá ser feita a audiência de apresentação nos termos do art. 186 do ECA. Nesta audiência deverão ser ouvidos o adolescente e seus pais ou o responsável, podendo o juiz solicitar a opinião de profissional qualificado quando entender ser o caso. Sempre será necessária a defesa técnica, estando apreendido ou não o adolescente.

O Superior Tribunal de Justiça fixou na Súmula n. 342 que, no procedimento para aplicação de medida socioeducativa, é nula a desistência de outras provas em face da confissão do adolescente.

Após a audiência de apresentação, abre-se o prazo de 3 dias para a defesa prévia nos termos do art. 186, § 3º, do ECA. A defesa prévia é a peça processual utilizada pela defesa para que sejam arroladas testemunhas e apresentadas eventuais alegações de nulidade ocorridas até o momento no processo.

Após a audiência de apresentação será marcada a audiência em continuação nos termos do art. 186, § 4º, do ECA. Nesta audiência, a sequência de atos será a oitiva de testemunhas e, depois, a realização de debates orais no prazo de vinte minutos para cada parte prorrogável por mais dez. Em seguida o juiz irá proferir sentença nos termos dos arts. 189 e 190 do ECA.

Sobre este procedimento para a aplicação de medida socioeducativa e as questões fixadas pela jurisprudência, são basicamente três os temas que merecem atenção: a) obrigatoriedade da defesa prévia; b) incidência do princípio da identidade física do juiz; e c) apelação e efeito suspensivo em caso de aplicação de medida socioeducativa.

4. Obrigatoriedade da defesa prévia

A jurisprudência sempre se manifestou no sentido da não obrigatoriedade da defesa...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT