Previdência Social no Quadro dos Direitos Fundamentais

AutorMarco Aurélio Serau Junior
Ocupação do AutorMestre e Doutor em Direitos Humanos (Universidade de São Paulo). Especialista em Direito Constitucional (Escola Superior de Direito Constitucional) e Direitos Humanos (Universidade de São Paulo). Professor universitário e de diversos cursos de pós-graduação, em todo o Brasil
Páginas25-49

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Ver Nota9

O presente capítulo não se pretende uma simples exposição a respeito dos direitos fun-damentais10, tal como geralmente apresentado nos "manuais" e na introdução dos trabalhos académicos contemporâneos. A pretensão aqui é a de inserir o conflito previdenciário, objeto do capítulo subsequente, no bojo dos direitos fundamentais, de modo dinâmico e objetivo, somente no que for indispensável ao desdobramento deste livro.

O tratamento adequado ao conflito previdenciário, objeto próprio desta obra, só pode ser obtido quando adotada a premissa de que os direitos previdenciários são direitos fundamentais, o que impõe certas exigências e limites no seu trato pelo Poder Público (em suas três esferas: Poder Legislativo, Executivo e Judiciário) e por toda a sociedade. As características jurídicas dos diretos fundamentais, em particular dos direitos sociais e, para nós, dos direitos previdenciários, devem ser levadas em conta no momento da solução dos conflitos em relação a tais relações jurídicas. É o que passamos a expor.

1.1. Afirmação histórica dos direitos fundamentais e a construção da Previdência Social

Adotamos parcialmente, neste tópico, o ponto de vista que visualiza a afirmação histórica dos direitos humanos (COMPARATO, 2005; WOLKMER; BATISTA, 2011:134-137). Isto é, sem que se adote a tese de que os direitos fundamentais se dão por etapas necessariamente subsequentes - o que será discutido com propriedade adiante -, verifica-se que os direitos fundamentais vão ganhando reconhecimento normativo progressivo com o desenvolvimento histórico.

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Parte-se de um momento histórico em que aquilo que residia em meras pretensões filosóficas de diversas estirpes torna-se parte essencial do sistema jurídico11. A dignidade humana vai ganhando proteção normativa cada vez mais completa e as diversas gerações/dimensões dos direitos fundamentais vão adquirindo força normativa e reconhecimento jurídico.

A dignidade humana é reconhecida, atualmente, como "um valor supremo, o primeiro dos valores fundamentais, o verdadeiro epicentro de todo ordenamento jurídico, em torno do qual gravitam todas as demais normas", em especial as normas que definem direitos fundamentais ou direitos humanos (SCHWARZ, 2013: 133-136) - tomadas por sinónimos nesse trabalho - com pretensão de validade universal, pois vinculada ao denominado "mínimo existencial".

Conforme Schwarz (2013:100) os direitos fundamentais, em um plano axiológico, são aqueles que pretendem a tutela de interesses ou necessidades básicas, ademais generalizáveis, pois ligadas ao princípio da igualdade real; sob o ponto de vista dogmático, contudo, direitos fundamentais são aqueles direitos inscritos em normas de maior valor no âmbito do ordenamento interno, como as constitucionais, ou mesmo em tratados e convenções internacionais. Contudo, nem sempre há conexão entre um e outro plano, o que é altamente criticável, especialmente do ponto de vista axiológico.

Os direitos humanos, ademais, devem ser contextualizados dentro das relações sociais em que ocorrem, abandonada a perspectiva abstraía e formalista que tradicionalmente lhes é atribuída, permitindo também aos marginalizados e oprimidos lutarem por sua dignidade - especialmente face às situações de desigualdade e injustiça típicas da globalização económica. O que faz os direitos fundamentais serem universais não é uma ideologia determinada que os coloque como ideais, como boas intenções, ou postulados metafísicos da natureza humana, isolados das situações vitais, mas o marco que permite a todos criar as condições particulares para fruição de sua dignidade (FLORES, 2011: 14; no mesmo sentido: SCHWARZ, 2013: 137-139).

A despeito da importância histórica da positivação moderna dos direitos humanos, deve-se superar o padrão formalista-universalista que prevalece sobre sua interpretação, aceitando-se valores como pluralismo e interculturalidade, que permitem múltiplas interpretações aos direitos humanos (WOLKMER, BATISTA, 2011: 132,140/143).

Adota-se a premissa de que os direitos humanos são históricos e, por isso, não estanques. Ao se considerar o contexto histórico como um fator desencadeante de direitos humanos, caracterizam-se estes pela mutabilidade, pois cada momento desperta necessidades e prioridades diferentes, além de apresentarem visões distintas acerca dos valores éticos e morais (WOLKMER; BATISTA, 2011: 133-134).

A concepção dos direitos humanos em gerações foi lançada pelo jurista francês Karel Vasak, em Conferência proferida no Instituto Internacional de Direitos Humanos no ano de 1979, onde os classificou em três gerações, cada uma com características próprias (RAMOS, 2012: 71) - atualmente há autores que encontram quatro ou cinco gerações de direitos fundamentais.

A visão dos direitos fundamentais em gerações causa discussões e polémicas, uma vez que passa a impressão de linearidade de conquista de um direito para depois o outro, e assim sucessivamente. A história do mundo, ademais, não se resume à história do continente europeu, que sempre foi tomado como modelo de desenvolvimento dos direitos fundamentais por etapas. Os direitos humanos são decorrentes de processos distintos de lutas em contextos diferenciados,

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desenvolvidos e recriados ante as modificações da própria sociedade (WOLKMER; BATISTA, 2011: 137; SARLET, 2004: 53-54). Ainda assim, para efeitos didáticos, cabe falar ou se referir aos direitos fundamentais a partir dessa perspectiva de dimensões, visto seu uso consagrado.

A primeira geração/dimensão de direitos fundamentais engloba os chamados direitos de liberdade, liberdades negativas, liberdades individuais ou direitos às prestações negativas, nas quais o Estado deve proteger a esfera de autonomia do indivíduo. São fruto das revoluções liberais do século XVIII na Europa e nos Estados Unidos, visando proteger o indivíduo face aos abusos do monarca ou do Estado. Destacam-se, nessa primeira dimensão, os direitos à liberdade, à igualdade perante a lei, propriedade, intimidade e segurança (RAMOS, 2012: 72; SARLET, 2004: 54-55).

A segunda geração ou dimensão de direitos fundamentais é aquela que aparece em momento histórico posterior ao reconhecimento normativo dos chamados direitos fundamentais de primeira geração, marcado pelas lutas sociais na Europa e na América. Essa situação não implica uma relação hierárquica ou de importância entre uns e outros, mas apenas uma diferente etapa histórica de afirmação.

Os direitos de segunda geração compreendem os direitos económicos, sociais e culturais. Representam a modificação do papel do Estado, de quem se passa a exigir um vigoroso papel ativo, promotor de bem-estar social, saindo de sua posição de mero fiscal das regras jurídicas (RAMOS, 2012: 73).

Indicam-se também os direitos de terceira geração, que são aqueles de titularidade da comunidade, como o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito à autodeterminação e o direito ao meio ambiente equilibrado. Tratam-se de direitos de solidariedade, que consideram o homem vinculado ao Planeta Terra, dotado de recursos finitos, divisão desigual de riquezas com miséria abundante e ameaças cada vez mais concretas à sobrevivência da espécie humana (RA-MOS, 2012: 73-74; SARLET, 2004: 56-58).

Recentemente, destacam-se os "novos" direitos, que são atípicos ou especiais, tendo vincula-ção direta com a vida humana, o que tem levado a avanços teóricos não consensuais e polémicos acerca de supostos direitos de quarta ou quinta dimensões (WOLKMER; BATISTA, 2011: 137), como a democracia, o direito à informação ou à comunicação e o direito ao pluralismo, conforme estipulação de Paulo Bonavides (RAMOS, 2012: 74; SARLET, 2004: 58-60).

Para a finalidade deste trabalho, e ainda mais por se tratar aqui de um tópico introdutório, reduziremos nossa análise histórica à formação dos direitos trabalhistas e previdenciários.

Retomando a questão dos direitos de segunda dimensão, tem-se que o Direito do Trabalho deve ser compreendido em uma perspectiva histórica. Em outras palavras: não há um Direito Universal ou "histórico" do trabalho, esse ramo do Direito é fruto de determinados fatores históricos que talvez não atuem com tanta intensidade em outros campos da dogmática jurídica (FREITAS JR., 2011: 160).

Embora na História humana os seres humanos sempre tenham exercido ocupações, o "trabalho" que é objeto da disciplina jurídica Direito do Trabalho não existiu sempre, tendo sido produto de um conjunto de fatores que caracterizam o que se convencionou chamar por Modernidade: o ser humano tutelado pelo Direito do Trabalho é o homem "juridicamente livre" para negociar sua força de trabalho, e não o escravo ou o servo, que eram a força de trabalho ocupadas em outras formações sociais históricas; a organização do trabalho à qual se destinam as normas laborais tornou-se, na Modernidade, essencialmente urbana e coletiva (FREITAS JR., 2011:160). Falaremos mais desses dois fatores específicos, frutos de dois fenómenos históricos extremamente relevantes, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial.

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A Revolução Francesa, situada historicamente em maio de 1789, pode ser considerada um fenómeno eminentemente político e o ponto culminante de um longo itinerário de afirmação política e jurídica de direitos de cidadania e liberdade, em que se pode destacar a Declaração dos Direitos de Virgínia (1776), a Declaração de Independência e Constituição norte-americanas (1787), o Bill ofRigths (1791), dela sendo fruto a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de...

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