A previdência social

AutorDaniel Pulino
Ocupação do AutorProfessor de Direito Previdenciário da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Procurador do Instituto Nacional do Seguro Social
Páginas30-61

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A disciplina das prestações conferidas especificamente dentro desta área da seguridade social apresenta certas diferenças em relação àquela que é aplicável às prestações de saúde e assistência social. Cumpre, portanto, anotarmos, mesmo que de modo breve, quais são essas diferenças, o que nos leva a desvendar o regime jurídico da previdência social.

1. Regime jurídico

A26 conveniência em diferenciar prestações previdenciárias das demais compreendidas na seguridade social advém do fato de aquelas prestações conformarem-se a determinado e específico regime: o jurídico-previdenciário (ou sistema jurídico previdenciário).

Com a expressão regime jurídico queremos designar uma parcela da ordem jurídica, um conjunto coerente de normas que se articulam para formar uma individualidade logicamente identificável, uma tipicidade. Trata-se, portanto, de um conjunto sistematizado de regras e princípios jurídicos aplicáveis a determinados sujeitos e a certa classe de fatos.

A utilidade da idéia de regime jurídico é encarecida por Celso Antônio Bandeira de Mello em valorosos ensinamentos, vazados nas seguintes palavras: “Como toda e qualquer noção jurídica (...) só tem préstimo e utilidade se corresponder a um dado sistema de princípios e regras; isto é, a uma disciplina peculiar. (...) Com efeito, o

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único objeto que o juiz, o advogado, o intérprete do sistema em geral procuram é o conjunto de regras que regula determinada situação ou hipótese. Segue daí que de nada lhes adianta qualquer conceito, categoria ou noção, por mais aliciante que seja, se não lhes fornecem a indicação dos princípios e regras pertinentes à solução de questões jurídicas. Eis, pois, que um conceito jurídico é necessariamente um ponto terminal de regras, um termo relacionador de princípios e normas27.

Assim, quando afirmamos a existência de um regime jurídicoprevidenciário, que pode ser destacado de dentro de outro sistema jurídico mais amplo, de seguridade social, estamos nos referindo ao complexo de regras e princípios aplicáveis a alguns sujeitos e em face de certos objetos, disciplinando, assim, certo tipo de relações jurídicas.

Importa advertir, contudo, que esse regime haverá de ser arrecadado no direito positivo, notadamente a partir de seu “dado supremo”28(a Constituição). Com isso, indicamos que o método de análise desse regime — como de resto de todo este trabalho — consiste em tomar como realidade os dados normativos da ordem jurídica, os quais serão investigados para que possamos ao final definir os traços característicos principais do direito previdenciário brasileiro, de forma que tal regime haverá de corresponder à expressão científica daquela realidade29.

Disso decorre, aliás, a desnecessidade de advertirmos que extraímos as noções que tipificam o regime jurídico-previdenciário do direito brasileiro atual, em vigor30; afinal, como as normas jurídicas

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são bens produzidos pelos homens, são criações humanas, elas podem ser mudadas de um para outro momento, devendo refletir-se, tal mudança, também na estruturação do regime.

Vejamos então em que consiste esse regime, não sem antes fazermos dois alertas.

Primeiro, o de que a enumeração das regras e princípios do direito previdenciário que adiante enunciaremos não é taxativa, não esgota, não exaure — apenas possibilita a caracterização de sua essência, com vistas tão-só a propiciar maior compreensão na exposição do estudo que empreendemos quanto à aposentadoria por invalidez, objeto desta dissertação. O que se pretende, em suma, é identificar a disciplina jurídica básica dentro da qual se insere o benefício previdenciário que nos propusemos a analisar no presente trabalho.

Em segundo lugar, deve-se ressaltar que, embora o conjunto dos princípios estruturadores desse regime orientem a compreensão da maior parte das circunstâncias envolvidas nas diferentes relações jurídicas de concessão de benefícios previdenciários do chamado regime geral, é possível que cada um deles tenha maior ou menor peso na interpretação de um ou outro instituto de direito previdenciário, de um ou outro benefício.

2. Conteúdo básico do regime jurídico-previdenciário

Dada a noção de regime jurídico, vejamos agora quais são os princípios e regras que lhe ditam a estrutura essencial. Antes de fazêlo, porém, é preciso que tragamos algumas idéias gerais, que nos serão de grande valia para entendermos por que é possível, em nosso direito, segmentarmos, por assim dizer, o sistema de seguridade social, para dele destacar uma parcela de normas e relações atinentes à previdência social.

Para que a seguridade social chegasse ao ideais fundamentais de universalidade subjetiva e objetiva e de uniformidade de prestações, seria necessário atingir-se o grau máximo de solidariedade social, que se refletiria, economicamente, no financiamento estatal completo do modelo pela via dos impostos — entendidos como tributos não-vinculados, em sua materialidade impositiva, a específica atuação estatal — não havendo, conseqüentemente, necessidade de delimitação de círculos específicos de contribuintes.

Não é este, no entanto, o estágio atual da seguridade social brasileira. Tal circunstância foi reconhecida pelo constituinte, de modo que, conquanto a seguridade social assegure a proteção em grau mínimo a todos os cidadãos, estabeleceram-se diferentes níveis ou

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faixas de proteção social em função de determinada classe de sujeitos e de certos tipos de necessidades. É, principalmente, por força dessa divisão do nível de proteção social na seguridade social, ditado — como não poderia deixar de ser — pela conformação das diferentes normas constitucionais, que se justifica a identificação de regimes jurídicos distintos dentro do sistema de seguridade social.

Assim, quanto à faixa de mais elevado grau protetivo (previdência social), o constituinte, num primeiro momento, adotou como centro temático de gravitação dessa seleção de sujeitos e de necessidades, basicamente — não, porém, exclusivamente, como logo veremos — as relações de trabalho na sociedade.

Num segundo passo, para viabilizar a existência e o funcionamento das medidas que integram essa limitada faixa de proteção mais elevada, impõe-se aos sujeitos envolvidos com as relações que formam aquele centro temático (e a outros sujeitos porventura protegidos) tributos específicos que formarão seu suporte financeiro31.

Portanto, é válido afirmar que a seguridade social, em nosso direito atual, conquanto constitua verdadeiro sistema de superação de necessidades sociais mediante uma série de medidas públicas que formam um todo — todo que se compõem de diversas ações (preventivas, reparadoras e recuperadoras), nas áreas de saúde, previdência e assistência social —, claramente admite pelo menos duas camadas de proteção, pois cuida, num primeiro momento, de garantir o que se convencionou chamar de mínimos sociais32, além de, num outro patamar, assegurar níveis economicamente mais elevados de subsistência, limitados, porém, a certo valor.

Pois bem, é neste segundo nível de proteção que se concentra especificamente a previdência social33. Essa situação impõe, como

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adiantamos, importantes diferenças no regime jurídico de concessão das prestações previdenciárias, quando comparadas com as prestações de assistência social e de saúde.

É partindo dessa idéia central, que se torna legítimo pensar as regras jurídicas — sobretudo de origem constitucional — estruturadoras do modelo brasileiro de previdência social como dotadas de especificidades capazes de conformar um sistema próprio (um subsistema), um regime jurídico-previdenciário, dentro da totalidade do sistema de seguridade social.

Com base nisso, enunciamos, a seguir, as noções categoriais que presidem esse subsistema ou regime jurídico positivo da previdência social brasileira.

2.1. Filiação prévia

Trata-se de ponto importantíssimo para diferenciar a previdência social das demais áreas da seguridade social.

Enquanto a Constituição Federal estabelece, no art. 196, que a saúde “é direito de todos”, enfatizando ainda que as ações nessa área da seguridade social são de “acesso universal” e, no art. 203, que a assistência social dirige-se “a quem dela necessitar”, para a previdência social, diferentemente, determina, no art. 201, caput, que a mesma há de ser organizada em “caráter contributivo e de filiação obrigatória34.

Na previdência social, como adiantamos, são protegidos sujeitos específicos — basicamente, o trabalhador e seus dependentes, como veremos na seqüência —, e não, indistintamente, a totalidade da população. Disso decorre a necessidade de, em primeiro lugar,

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demarcar-se o quadro de beneficiários que potencialmente receberão as prestações; além disso, dado que o financiamento dessas prestações será feito com recursos específicos, formados a partir da colaboração direta e necessária desses sujeitos protegidos — bem como com os aportes de outros sujeitos que com estes se relacionem justamente na realização do trabalho —...

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