Sobre Prevenção e Reparação de Danos Contratuais em Relações de Consumo: Reflxões à Luz da Doutrina e da Jurisprudência

AutorAdalberto Pasqualotto/Cláudio Lima Nery
CargoProfessor titular de Direito do Consumidor nos cursos de graduação, mestrado e doutorado da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Brasil)/Mestrando no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Páginas45-70

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Introdução

Como assegurar o equilíbrio contratual nos contratos de massa? Este é, no fundo, o tema deste artigo, e de antemão se sabe que não há uma resposta segura.

Com efeito, à ideia de contrato é inerente um acordo negociado, de tal modo que as manifestações de vontade resultem do encontro de um ponto em comum que contemple equitativamente os interesses dos contratantes, os quais são, em princípio, contrapostos. Essa ideia parece ser, à partida, incongruente com a oferta massificada de negócios pré-moldados unilateralmente por um só dos contratantes, restando ao outro apenas a manifestação de vontade mínima da aceitação.

Não é o caso de ressuscitar aqui a velha discussão sobre a juridicidade dos contratos de adesão. Eles se impuseram ao direito com a força inexorável da realidade, reclamando uma acomodação no sistema jurídico. E assim foi feito, o que não quer dizer que os problemas, na prática, estão todos solucionados. Persistem dificuldades de toda ordem, para as quais as soluções legislativas variam entre duas margens: de um lado, a imposição de deveres ao contratante forte, no sentido de obrigá-lo a compensar a desigualdade material do contratante fraco, mediante informações obrigatórias e eventuais prazos de reflexão, conforme a natureza do contrato; de outro lado, reprimindo os abusos da posição privilegiada de que desfrute o contratante forte, pela imposição de regimes sancionatórios, como é o caso das cláusulas abusivas e da possibilidade de revisão do conteúdo do contrato. Essas duas margens dizem respeito, respectivamente, à prevenção e à reparação de danos contratuais, tal como se verifica no Código de Defesa do Consumidor brasileiro.

Sabe-se, porém, e é necessário que se o diga expressamente, que as normas legais são muitas vezes pro forma, na medida em que, frequentemente, sequer os consumidores estão dispostos a cumpri-las. Tome-se como exemplo um contrato de seguro que interessa ao comprador de um automóvel novo. A seguir-se o que dispõe o art. 46 do CDC, o segurador deveria prestar informações prévias ao consumidor, assegurando-se que todas as cláusulas do contrato tivessem sido bem compreendidas. Não é assim, todavia, que o contrato de seguro, nesses casos e em muitos outros, é firmado. O comprador do automóvel quer sair imediatamente da concessionária com plenitude da cobertura, em razão do que ele não se importa de não tomar conhecimento prévio do conteúdo do contrato e de receber a apólice aproximadamente um mês depois, quando, para infelicidade sua, talvez já tenha recorrido à

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seguradora em virtude de algum infortúnio, e quando não tenha, para infelicidade maior, recebido uma negativa pela alegada existência de alguma cláusula de exclusão do seu pretendido direito. O direito, no entanto, apesar do intuito preventivo da norma de informação prévia obrigatória, poderá socorrê-lo ex post facto. Nem tudo está perdido, uma vez que a eficácia pode ser retroativa.

Indo da norma à realidade e voltando à norma para restaurar o justo, eis o périplo que o jurista deve percorrer. O propósito deste artigo é verificar, no caso das disposições pertinentes à prevenção e à reparação de danos contratuais presentes no CDC, de que modo vem se dando, na prática, a aplicação do direito. O texto se detém, incialmente, no art. 46 do CDC, que trata especificamente de prevenção; no segundo capítulo, a matéria é a reparação, mas, neste caso, limitando-se à Súmula 381 do Superior Tribunal de Justiça, que trata particularmente de cláusulas abusivas em contratos com bancos.

1. Sobre prevenção de danos contratuais: análise dos fundamentos do art 46 do CDC, e de decisões a ele relativas

O Código de Defesa do Consumidor estampa, no art. 6º, inc. VI, como um dos direitos básicos do consumidor, “a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”. Na esteira da moderna responsabilidade civil, ao lado do direito à reparação, o legislador teve a preocupação de prover a prevenção de danos, fiel à máxima popular de que é melhor prevenir do que remediar.

A norma é ampla, não apenas quanto à subjetividade ou transubjetividade do dano (individuais, coletivos ou difusos), como também no pertinente à sua origem, que ficou oculta pela omissão do texto: nada foi dito quanto ao dano provir de infração ao princípio neminen leadere (o que remeteria à ideia de responsabilidade aquiliana) ou ter como fonte imediata uma preexistente relação jurídica contratual entre o lesante e o lesado (remetendo, por conseguinte, à responsabilidade civil contratual). Não poderia ser diferente em diploma legislativo que superou essa dicotomia, vinculando unificadamente a responsabilidade civil à violação objetiva de um dever de qualidade: no caso do fato do produto ou do serviço, dever de qualidade relacionado à segurança do consumidor; no caso dos vícios, dever de qualidade quanto à adequação dos produtos e serviços à sua finalidade1.

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Todavia, parece haver uma certa intuição, talvez um vício de comportamento, em relacionar a prevenção de danos apenas à esfera extracontratual (extranegocial, como diria, com razão, Fernando Noronha2), como se persistisse uma resistência ancestral em mudar de vez o eixo do sistema binário da responsabilidade civil para o unitário. É pouco percebido que o CDC dispõe claramente uma norma de prevenção de danos no art. 46, a qual, quiçá por força dessa resistência inconsciente, permanece na penumbra.

Com efeito, ao se rever a bibliografia,
constata-se que os comentaristas dedicam ao art.
46, via de regra, escassos comentários, divergindo
especialmente quanto aos efeitos que dele podem
ser extraídos. Poucos, inclusive, aludem ao fato
de que se trata de uma norma com finalidade
preventiva. De outro lado, os tribunais aplicam o
art. 46 com frequência menor do que poderiam,
ainda que o autor da ação não o invoque como
fundamento de sua pretensão. Poderiam fazê-lo,
nada obstante, com base no princípio dami tabus
tibi ti iura
. Felizmente essa tendência vem mudando nos últimos tempos, especialmente no Superior Tribunal de Justiça, o que é alvissareiro, haja vista a importância da jurisprudência firmada pelo STJ e a sua força emulativa sobre os tribunais inferiores.

Outro âmbito de aplicação fértil seria o administrativo, onde o art. 46 poderia revelar toda a sua potencialidade de evitar danos aos consumidores, e mais: de prevenir demandas no Judiciário e de contribuir para o saneamento do mercado. Tudo isso poderia ser alcançado mediante um controle preventivo dos contratos de adesão, a ser feito do modo não como o legislador o estipulou na redação original do CDC, a qual, nesse particular, acabou sendo corretamente vetada pelo presidente da República ao sancionar a lei. Previa o projeto aprovado no Congresso Nacional, em disposições distintas, que o Ministério Público teria poderes para efetuar o controle abstrato das cláusulas contratuais gerais, mediante inquérito civil, decisão que teria caráter geral; e que o formulário-padrão dos contratos de adesão deveria ser remetido ao Ministério Público para o controle da regularidade das suas cláusulas. A primeira disposição fazia parte da normatização das cláusulas abusivas, no art. 51, e a segunda dos contratos de adesão, no art. 54.

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O veto presidencial fundamentou-se em que tais atribuições conferidas ao Ministério Público desfigurariam o seu desenho constitucional, além de vulnerarem o monopólio do Poder Judiciário de controlar de modo amplo e geral a legitimidade dos atos jurídicos. Ao lado dessas razões, adequadamente invocadas, ainda se poderia lembrar outra: a de que o Ministério Público se transformaria em verdadeiro cartório, com pouca possibilidade prática de vencer a presumível carga de trabalho que teria, com a desvantagem adicional de representar um entrave burocrático ao fluxo natural dos negócios. Ficou bem posto, portanto, o veto, mas está mal a aplicação do dispositivo remanescente, que poderia levar à consecução do escopo frustrado do legislador de prevenir danos contratuais ao consumidor.

1.1. Deveres de informação e de transparência e a consequência teórica do seu descumprimento

De modo genérico, como frisado acima, o art. 6º, inc. VI, do CDC prevê a prevenção de danos como direito básico do consumidor. De modo particular, essa norma diretiva se reflete na segurança de produtos e nos contratos. Nessas duas esferas, a prevenção é projetada como efeito da informação e esta, por sua vez, é direito básico dos consumidores, conforme o art. 6º, inc. III, do CDC. O reflexo desse direito é o dever de informar imposto aos fornecedores, que aparece nitidamente, quanto à segurança de produtos e serviços, nos artigos 8º a 10. Todavia, por não ser a segurança objeto do presente estudo, esse tema ficará de lado, seguindo abaixo considerações pertinentes ao regime contratual.

O capítulo VI do primeiro título do Código de Defesa do Consumidor tem por objeto a proteção contratual. O capítulo divide-se em três seções, a saber: disposições gerais, cláusulas abusivas e contratos de adesão. Nessas seções encontra-se um conjunto significativo de inovações legislativas que tiveram grande repercussão, porque, ao ser editado o CDC, eram inéditas no direito brasileiro, embora viessem de alguns anos sendo tratadas na doutrina e, por isso mesmo, eram reclamadas ao legislador. Os tribunais também delas careciam, mas, como tardavam, algumas cortes...

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