Prazer e sofrimento no trabalho: reflexões sobre a ambivalência do trabalho no Brasil contemporâneo e sua ligação com o direito

AutorLetícia Bittencourt e Abreu Azevedo - Lídia Marina de Souza e Silva
Ocupação do AutorGraduanda em Direito da PUC-MG. Fundadora do Projeto Social MXZ ? Student Leader (Estudante Líder) pelo Departamento de Estado Norte-Americano - Mestra em Direito do Trabalho pela PUC-MG. Especialista em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito Milton Campos. Professora e Advogada.
Páginas117-126

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1. Introdução

O vocábulo "trabalho" tem origem na palavra latina tripalium, que designava um objeto construído com três paus pontiagudos, ora utilizado como ferramenta de agricultura, ora utilizado como instrumento de tortura. Nota-se que, etimologicamente, as noções de prazer (alimento/vida) e de sofrimento (dor/morte) se prendem de forma simultânea ao trabalho.

É certo que, nos dias de hoje, a dualidade que caracteriza o trabalho na etimologia também o acompanha na realidade fática. Este artigo se propõe a estudar tal dualidade, ou seja, a analisar o trabalho como fonte de prazer e de sofrimento, bem como a forma como essa ambivalência do trabalho é afetada pelo Direito Brasileiro nos dias atuais, em tempos de mundialização da economia.

2. Apontamentos sobre a produção e o trabalho no brasil em tempos de globalização econômica

"Assim, não se trata apenas de saber qual futuro nos espera, mas o que o futuro espera de nós. E não há neutralidade possível. Ou ajudamos a demolir o direito, ou lutamos para reconstruí-lo; ou nos curvamos à nova ordem, ou semeamos a nossa própria desordem no caos..." 1

De acordo com Mauricio Godinho Delgado, a globalização econômica iniciada na década de 1980 caracteriza-se "por uma vinculação especialmente estreita entre os diversos subsistemas nacionais, regionais ou comunitários, de modo a criar como parâmetro relevante para o mercado a noção de globo terrestre e não mais, exclusivamente, nação ou região".2 Na chamada "era da mundialização do capital", a economia passou a controlar o Estado e a ditar suas novas funções, e, nesse cenário, muitas mudanças ocorreram no mundo da produção e do trabalho.

As transformações que caracterizam a globalização econômica tiveram origem multifatorial. Dos fatores que ensejaram as mudanças ocorridas (entre os quais estão inseridas a expansão do ideário neoliberal/ultraliberal, inclusive nos países de economia periférica, e a queda dos projetos socialistas), destacam-se a crise do padrão monetário mundial,

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surgida com o fim, por decisão do governo norte-americano, da paridade ouro-dólar, e os choques do petróleo ocorridos na década de 1970.

Para José Eduardo Faria, os dois fatores destacados foram decisivos para a configuração do cenário econômico marcado pelo desequilíbrio, entre outros, do comércio, dos preços de bens e serviços e das taxas de câmbio e de juros, verificado nas três últimas décadas.3 Foram igualmente ensejadores do esgotamento do potencial de expansão do mode-lo financeiro, produtivo, industrial e comercial que até então vigorava, tornando necessárias respostas rápidas para a crise instalada.

As soluções encontradas para o momento de instabilidade econômica provocaram uma grande reestruturação do sistema financeiro internacional.4

Evidenciaram-se relevantes transformações nas estruturas produtivas, organizacionais e decisórias das empresas, as quais marcaram a superação do modelo de produção fordista/taylorista5 pelo toyotista, caracterizado pela vinculação da produção à demanda, com observância do princípio do just in time; pela diversidade e heterogeneidade da produção; pela valorização do trabalho operário em equipe, com multivariedade de funções; e pela horizontalização do processo produtivo.6

Tem-se, portanto, que, na década de 1980, especialmente nos países de capitalismo avançado, o salto tecnológico, a automação, a robótica e a microeletrônica invadiram as fábricas; o cronômetro e a produção em série e de massa deram lugar à flexibilização produtiva.7 Esboçou-se o perfil de uma empresa com propostas de minimização do espaço físico; de redução de custos, principalmente com o pessoal; de contratação, de alterações e de dispensa flexíveis; de subcontratação e de terceirização; de moderna e eficiente rede de fluxo permanente de informações; de gestão pelos olhos; de poliqualificação dos poucos empregados; de tempo partilhado; de sindicato por empresa.8

Nesse contexto, a classe trabalhadora presenciou algumas tendências: o surgimento de formas mais desregulamentadas de trabalho; o aumento do novo proletariado fabril e de serviços, em escala mundial; o aumento significativo do trabalho feminino, regra geral absorvido no universo do trabalho precarizado; a expansão dos assalariados médios no setor de serviços; a crescente exclusão dos jovens e dos trabalhadores com idade aproximada de 40 anos do mercado de trabalho, paralelamente à inclusão de crianças, de forma ilegal/ilícita; a expansão do trabalho no chamado "terceiro setor"; a expansão do trabalho em domicílio; e a transnacionalização da ação dos trabalhadores.9 Ela tornou-se ainda mais fragmentada, heterogênea e complexa:

Criou-se, de um lado, em escala minoritária, o trabalhador "polivalente e multifuncional" da era informacional, capaz de operar máquinas com controle numérico e de, por vezes, exercitar com mais intensidade sua dimensão mais intelectual. E, de outro lado, há uma massa de trabalhadores precarizados, sem qualificação, que hoje está presenciando as formas de part-time, emprego temporário, parcial, ou então vivenciando o desemprego estrutural.10

Destacando que, em tempos de pós-fordismo, o desemprego produz não apenas pobres, mas excluídos; que o trabalhador é forçado a uma autonomia que coexiste com o estigma do desemprego; e que o subemprego, quase sempre ligado à terceirização, também é uma realidade, Márcio Túlio Viana explica:

Efeitos do novo modelo, o desemprego e a terceirização desencadeiam, eles próprios,

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outros efeitos que atuam inclusive sobre os empregados típicos. E é assim que os salários se comprimem, o poder patronal se exaspera, o trabalho se intensifica e [...] a ação coletiva se enfraquece. Tal como, em certo sentido, o indivíduo passa a se opor ao grupo, a massa inorganizada acaba minando a resistência do coletivo organizado.11

Vale frisar que, com a implantação do modelo toyotista, ganharam espaço as noções de flexibilização e desregulamentação de direitos laborais, as quais têm servido, pelo menos no Brasil, à precarização da situação de quem vive do trabalho:

Sob um ponto de vista estritamente conceitual, flexibilização representa a adaptação das regras jurídicas a uma nova realidade, gerando um novo tipo de regulamentação. Por desregulamentação identifica-se a ideia de eliminação de normas do ordenamento jurídico estatal que não mais se justificariam no contexto social, incentivando-se a autorregulação pelos particulares.

Ambas, no entanto, quando apoiadas no pressuposto da necessidade de alterar as relações de trabalho, para fins de satisfação do interesse econômico, acabam se constituindo em meros instrumentos de redução dos custos do trabalho, mascarando-se tal intenção.12

É importante ressaltar que, no Brasil, não houve a adoção do toyotismo em sua plenitude. Na grande maioria dos casos, a estrutura produtiva continua seguindo o modelo fordista/taylorista ou uma mistura de modelos13, e a produção é toyotista apenas na sua concepção precarizadora da situação do trabalhador. A maioria dos trabalhadores não é "multifacetada" - diz-se que é, sim, "mutilada", em seus ideais, sua criatividade, individualidade e seus direitos, sendo certo que o desemprego, o subemprego, as terceirizações e as contratações por prazo determinado aqui convivem com o descumprimento reiterado da legislação protetiva trabalhista.

3. A ambivalência do trabalho no brasil contemporâneo: considerações à luz do direito

As formas atuais de organização da prestação de serviços e da produção contribuem para que o trabalho seja ambivalente: ao mesmo tempo, fonte de prazer e de sofrimento para quem dele vive. O Direito Brasileiro, sem dúvida, afeta essa realidade.

3. 1 Trabalho e prazer

"Se, por um lado, explorar o trabalho do homem é açoitar o seu corpo, de outro lado não lhe dar trabalho é açoitar a sua alma, é degenerar os seus valores morais."14

O trabalho revela-se como fonte de prazer. O homem deseja o trabalho e a ele prende a sua dignidade de pessoa, cidadão e provedor:

Nada, nada mesmo dignifica mais o homem do que o trabalho e o faz à semelhança de seu Criador.

Em contrapartida, nada, nada mesmo torna o homem mais indigno do que a falta de trabalho.15

Na sua dimensão objetiva, o trabalho apresenta-se como resultado da força criativa do ser humano e envolve a noção de domínio da natureza pelo homem. Na sua acepção subjetiva, corresponde a um elemento essencial para a sobrevivência e para o crescimento moral, espiritual, religioso, intelectual, cultural, científico e material do homem. O resultado do trabalho (em seu sentido objetivo) depende da existência da pessoa que o realiza, e, reconhecendo-se o homem como sujeito do trabalho, é forçoso admitir que este "possui um valor ético insuperável"16.

Inicialmente, vale dizer que o trabalho é um elemento de identificação. O homem se apresenta pelo que faz, e o fruto do seu trabalho é uma marca deixada no tempo e na história:

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Como se verifica, o trabalho foi, é e continuará sendo um traço específico da personalidade do homem. Está dentro e fora dele, uma vez que o acompanha em todos os momentos da sua existência: pelo que faz e pelo que fez; pelo que construiu e pelo que destruiu. Sua imagem se perpetua pelas suas realizações no campo do saber e no terreno da produção.17

Por meio do trabalho, o homem provê seu sustento próprio e o dos seus dependentes. Esse é o motivo mais óbvio pelo qual o trabalhador se engrandece por ter serviço a prestar.

O trabalho também permite a autorrealização do homem. Quem se prepara e consegue o trabalho sonhado ou esperado, se sente bem e feliz ao colocar em prática os...

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