A possibilidade jurídica da declaração de falência das sociedades civis com a adoção da teoria da empresa no direito positivo brasileiro

AutorJorge Rubem Folena de Oliveira
Páginas136-147

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1. Considerações introdutórias

De uma forma em geral, ainda persiste no cenário jurídico nacional a diferenciação entre sociedades civis e comerciais. A distinção entre tais sociedades está apoiada no ato de comércio, salvo as sociedades anónimas que, por imperativo legal, estendem os efeitos comerciais às sociedades civis que adotem, na sua estrutura, este tipo de sociedade por ações.

As legislações comerciais procuram enumerar quais seriam os atos de comércio, a exemplo do que fez o Código Comercial francês de 1807, em seus arts. 632 e 633. No Direito nacional, os atos de comércio foram relacionados no art. 19 do Regulamento 737/1850, sendo estes atos os seguintes, para caracterizar a profissão mercantil: a) a compra e venda ou troca de efeitos móveis ou semoventes, para os vender por grosso ou a retalho, na mesma espécie ou manufaturados, ou para alugar o seu uso; b) as operações de câmbio, banco e corretagem; c) as empresas de fábricas, de comissão, de depósitos, inclusive aqueles feitos em armazéns gerais, de expedição, consignação e transportes de mercadorias, de espetáculos públicos; d) os seguros, fre-tamentos, riscos e quaisquer contratos relativos ao comércio marítimo, e, e) a armação e expedição de navios.

O ato de comércio, basicamente, tem seu fundamento na intermediação ou na interposição de trocas. Desta forma, as pessoas que não praticam intermediação, não seriam consideradas comerciantes, por conseguinte, não beneficiando-se dos direitos e vantagens inerentes a esta classe.

Porém, de longa data, a doutrina vem se posicionando negativamente quanto à distinção entre as sociedades civis e comerciais com base no ato de comércio.1

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Ademais, as relações económicas travadas internacionalmente, envolvem não somente a comercialização de bens, mas, acima de tudo, prestações de serviço,2 serviços estes de importância fundamental para a sociedade contemporânea, tais como de telecomunicações, informática, transportes, financeiros etc.3

Estas relações económicas não são mais tratadas por meros comerciantes da era do mercantilismo, que estavam, sob chancela do Estado absoluto, em busca de especiarias orientais para comercializarem na Europa renascentista. Na sociedade moderna, estas relações económicas são travadas por empresários que movimentam bilhões de dólares em todo o mundo, ora globalizado.

Todavia, nosso Direito, ressalvada a Lei das Sociedades Anónimas,4 que já teria adotado a teoria da empresa,5 ainda trata estes homens de negócios como os comerciantes do século XV e XVI. Além do que não reconhece o ato empresarial que envolve todas as atividades económicas organizadas, desde a produção até a circulação de bens e prestação de serviço.

Acresça-se, ainda, que as empresas, ao contrário das sociedades comerciais, principalmente as por cotas de responsabilidade limitada, cada vez mais tornam-se despersonalizadas da figura dos seus sócios.6 Há, nas empresas contemporâneas, uma infinidade de sócios que jamais se viram, sendo apenas meros investidores de capitais. Estas empresas, com a era da "globalização e da regionalização de mercados", têm suas atividades espalhadas por todo o Globo ou em mercados internacionais regionalizados em seus respectivos continentes.7

Independente de tudo isto, o nosso Direito Positivo aos poucos vem consagrando a denominada teoria da empresa, cuja meta é transformar as relações comerciais em relações empresariais. E, assim, igualmente, tem procedido a nossa jurisprudência reconhecendo a teoria da empresa em nosso meio.8

2. Afigura do comerciante e a falência

Salienta-se que, com o advento da Revolução Industrial e o surgimento da máquina a vapor, do telefone, da ampliação e desenvolvimento da navegação marítima e aérea, da expansão ferroviária e da intensificação das prestações de serviço nas grandes metrópoles, uma série de transformações ocorreram no mundo empresarial, deixando a agricultura e o comércio de produtos manufaturados de serem o ponto central da atividade económica, para cederem seus lugares às novas atividades ligadas ao

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avanço tecnológico decorrentes da Revolução Industrial.9 Pode-se dizer, portanto, que a empresa e atividade empresarial surgem com a Revolução Industrial, quando, a partir de então, substituem o comércio de mercadorias e o comerciante do apogeu das atividades económicas. Assim, outras atividades, além do comércio, passam a ter vulto na ordem económica.10

Entretanto, o Direito nacional, desde a virada do século passado, até agora, próximo ao novo milénio, não acompanhou de perto as evoluções decorrentes da Revolução Industrial. Exemplo disto, é a própria Lei de Falências, onde em plena década de 40,11 dispensava aos homens de negócio, no país, o mesmo tratamento próprio dado aos comerciantes da era do mercantilismo; só que os tratava pela prática habitual de atos de comércio, conforme influência, extremamente objetivista, herdada do Código Comercial francês, de 1807.12

O Direito brasileiro estava, até então, assentado na figura do comerciante, cuja noção está vinculada à prática de ato de comércio. Então, somente os que praticavam tal ato, com frequência e de forma profissional, eram considerados comerciantes.13

Nesse contexto, o Decreto-lei 7.661, de 21.6.45 (Lei de Falências), por força de seu art. 12, restringiu à sua aplicação apenas aos comerciantes,14 excluindo de sua incidência os devedores civis.

É imperioso registrar que a definição de comerciante, como realçou Wille Duarte Costa (in Revista 2/265), é mais uma questão política, que o legislador usa sem qualquer critério, isto porque o Código Comercial não nos dá uma definição segura de comerciante.

Com efeito, o Código Comercial brasileiro, em seu art. 4º, apenas refere que

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comerciante é quem "(...) faça da mercancia profissão habituar, i.e., em outras palavras, quem pratica o ato de comércio. Esta previsão segue a linha adotada no Código Comercial francês de 1807 que em seu art. 1º previa que: "são comerciantes aqueles que exercem atos de comércio e deles fazem profissão habituar.

Então, o comerciante pode ser definido como a pessoa natural ou jurídica que exerce com habitualidade atividades-mer-cantis.15 O exercício das atividades mercantis está relacionado com a prática, profissional, habitual (art. 4º, CCom) dos atos de comércio,16 arrolado no art. 19 do Regulamento 737/1850.17

Saliente-se, ainda, que a atividade comercial pode decorrer de imperativo legal, tal como ocorre, v.g., com as sociedades anónimas (art. 2º, § 1º da Lei 6.404/ 76), as empresas de construção (art. 1º da Lei 4.068/62), as empresas concessionárias de serviços aéreos (art. 191 da Lei 7.565/ 68, Código Brasileiro de Aeronáutica) e o incorporador imobiliário (art. 43, III, da Lei 4.591/64) que pode ser declarado falido.

Infere-se, destarte, que os comerciantes seriam (I) todos aqueles que praticam, profissionalmente, atos de mercancia ou (II) as pessoas assim consideradas por força legal.

No entanto, Ruben Ramalho (1989:33) adverte que "a tendência do direito moderno é a substituição do substantivo comerciante por empresário",18 uma vez que, assim pensamos, a empresa e, por conseguin-te, o empresário, passam a dominar o novo cenário económico', ora totalmente influenciado pela globalização em franca evolução,19 ao contrário da figura do comerciante que tem sua origem na era renascentista, do mercantilismo e das expansões comerciais, onde se colocava, volta-se a repetir, "na busca de sedas e especiarias orientais para comercializarem no mundo ocidental".

Portanto, doravante, é na pessoa do empresário, aquele que pratica atividades económicas de forma organizada - independente da mera comercialização de mercadorias, mas responsável e envolvido com todo o ciclo de produção, comercialização e prestação de serviço20 - que deverá recair as atenções do Direito Comercial, que por ora, em decorrência destes fatos, é por muitos denominado de Direito Empresarial.21

3. Da distinção entre as sociedades comerciais e as civis

De antemão, ressalta-se que a distinção entre as obrigações comerciais e civis

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das sociedades referidas, decorre das codificações do século XVIII e XIX, uma vez que, como manifesta José da Silva Pacheco (1979:8): "(...) de início, o Direito era único, abrangendo todas as matérias, desde a administrativa, económica, militar, penal, civil e judicial. (...) No século passado, em que a codificação se impõe, como forma de autodeterminação dos povos, por influência da Revolução Francesa, Revolução Comercial, Industrial e Intelectual, surgiram os códigos civis, criminais e comerciais, aqueles dois prestigiados pela herança romano-canônica-universitária, e estes pelo ímpeto, descortino, desassombro e agressividade dos empresários. (...)" (nossos grifos).

No entanto, muitos juristas, entre estes pode ser destacado Teixeira de Freitas, pregavam pela unidade do direito privado,22 não devendo existir tratamento diferenciado entre obrigações civis e comerciais.

A ideia de unificação do direito privado foi acolhida por legisladores de vários países, tais como os da Suíça, Polónia e Itália,23 já que a distinção entre as obrigações comerciais e civis era desprovida de qualquer fundamento lógico-científico,24 por serem-aquelas obrigações próprias do direito privado, comum tanto aos comerciantes quanto aos não comerciantes.

Contudo, ao contrário de outros países, o Direito pátrio, até então, não teria unificado as obrigações comerciais e civis. Assim, dispensando tratamento diferenciado entre aqueles que praticam ato de co-mércio para os que executam atividades consideradas civis.25

Assim, se a atividade desenvolvida não apresentar nenhum dos caracteres próprios...

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