A Autorregulação da Comunicação Comercial em Portugal: Panaceia para a Inoperância do Modelo Regulador Tradicional?

AutorSusana Almeida
CargoDocente na Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico de Leiria
Páginas227-250

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I Preliminares
1. Regulação, autorregulação e corregulação: conceituação

Na sociedade de consumo em que vivemos, regida por regras de economia de mercado, a publicidade desempenha um papel fundamental no desenvolvimento da economia, porquanto funciona como "instrumento privilegiado do fomento da concorrência"1e, por outra via, apresenta a inegável vantagem de conferir ao consumidor a possibilidade de ser informado, inter alia, sobre as características ou as condições de aquisição dos produtos e serviços publicitados2. Não obstante, atendendo às características hipnóticas desta poderosa ferramenta e aos efeitos perniciosos que poderá produzir na esfera dos consumidores, e, portanto, para não desvirtuar as preditas e outras valias, a publicidade deve observar certas regras legais e éticas que delimitem o espaço de liberdade em que se pode licitamente mover. A publicidade deve, pois, ser objeto de regulação. Ora, a regulação, tal como tradicionalmente a conhecemos, divide atualmente esforços, em vários setores e, em particular, no domínio da comunicação comercial, com os atrativos modelos alternativos da autorregulação e da corregulação. Vejamos em que consistem estes modos de regulação.

Para obstar a que se subvertam as descritas virtudes assinaladas à publicidade e "[s]em recorrer a intenções paternalistas e recusando mesmo soluções de cariz protecionista", como esclarece o legislador luso3, as autoridades estaduais criam regras jurídicas imperativas, em sintonia com as orientações provenientes da União Europeia, e velam pelo seu cumprimento. Este é o mecanismo regulador tradicional de cariz exclusivamente governamental ou comunitário: a regulação.

Já a autorregulação, como explica a European Advertising Standards Alliance (EASA), é o "sistema pelo qual a indústria da publicidade ativamente se policia"4.

Com efeito, os operadores desta indústria - anunciante, proissional ou agência de publicidade e titular do suporte publicitário - assumem voluntariamente a responsabilidade social de criar normas e princípios éticos e, bem assim, de erigir um sistema eicaz que assegure o seu respeito. Também o Acordo Interinstitucional - "Legislar melhor" (2003/C 321/01), do Parlamento Europeu, Conselho da União Europeia e Comissão das Comunidades Europeias, nos auxilia nesta tarefa de delimitação conceitual, na medida em que elucida, no seu considerando 22, que a autorregulação consiste na "possibilidade de os operadores económicos, os parceiros sociais, as organizações não governamentais ou as associações adotarem entre si e para si linhas diretrizes comuns a nível europeu (designadamente códigos de conduta ou acordos setoriais)"5. Portanto, neste âmbito, as autoridades

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estaduais ou comunitárias abstêm-se de interferir no processo regulador, podendo apenas iscalizar a conformidade destas normas éticas com as disposições jurídicas imperativas de origem estadual ou comunitária6. Acresce que a autorregulação, ao contrário de corregulação, "não implica um ato legislativo"7.

Por im, na corregulação, a tarefa reguladora é repartida entre as autoridades estaduais e os operadores da indústria da publicidade, combinando, portanto, facetas dos modelos anteriormente descritos. O citado Acordo Interinstitucional - "Legislar melhor", no seu considerando 18, vem esclarecer que corregulação é "o mecanismo pelo qual um ato legislativo comunitário atribui a realização dos objetivos deinidos pela autoridade legislativa às partes envolvidas reconhecidas no domínio em causa (nomeadamente os operadores económicos, os parceiros sociais, as organizações não governamentais ou as associações)" e acrescenta que este "mecanismo pode ser utilizado com base em critérios deinidos no ato legislativo para assegurar a adaptação da legislação aos problemas e aos setores em causa, para aliviar o trabalho legislativo, concentrando-se este nos aspetos essenciais, e para aproveitar a experiência das partes envolvidas". Neste sentido, o uso de sinergias da sociedade civil e das autoridades estaduais permite a criação, com uma base estabelecida na lei, de normas lexíveis, privilegiadamente conhecedoras da realidade em constante mutação e de aplicação eicaz, visto que os destinatários são os seus criadores. Portanto, a corregulação será a autorregulação que se encaixa num quadro legal8.

No presente trabalho, propomos modestamente introduzir-nos nos meandros da autorregulação da comunicação comercial no cenário luso, conhecendo o seu modo de funcionamento, assinalando as suas vantagens e questionando a sua eicácia, tomando como paralelo o sistema regulador tradicional. Antes, porém, de encetarmos caminho, dedicaremos duas linhas aos demais modelos de regulação.

2. O tradicional modelo de regulação no contexto luso e a corregulação enquanto velada aspiração da União Europeia

Vimos nos parágrafos precedentes que o protagonismo económico, social e cultural da publicidade não nos permite perspetivar este instrumento como um mal menor, mas, devido aos não despiciendos perigos que representa, deve ser objeto de regulação, o que resulta, desde logo, de imperativo ínsito na Lei Fundamental9.

Entre nós, é o Código da Publicidade, aprovado pelo Decreto-Lei 330/90, de 23 de outubro10, que, em harmonização com a legislação comunitária - nomeadamente as Diretivas 84/450/CEE, 89/552/CEE, 2005/29/CE e 2007/65/ CE -, concede assento legal às regras basilares que devem pautar a atividade

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publicitária. Assim, e sem pretensões de exaustão da nossa parte, este diploma enuncia os princípios que instituem o quadro fundamental dentro do qual se deve circunscrever toda a comunicação comercial (arts. 6º e ss.), delimita as restrições ao conteúdo da mensagem publicitária (arts. 14º e ss.) e, bem assim, ao seu objeto (arts. 17º e ss.), estabelece algumas regras sobre formas especiais de publicidade e outras formas de comunicação comercial (arts. 23º e ss.) e, por im, prevê o regime sancionatório (arts. 34º e ss.). As formas especiais de publicidade e outras técnicas de comunicação comercial são depois objeto de regulação especíica em diplomas avulsos, tais como a Lei 6/99, de 27 de janeiro, atinente à regulação da publicidade domiciliária por telefone e por telecópia, a Lei da Televisão, aprovada pela Lei 27/2007, de 30 de julho e alterada pela Lei 8/2011, de 11 de abril, ou a Lei da Rádio, aprovada pela

Lei 54/2010, de 24 de dezembro, ou ainda a Lei 41/2004, de 18 de agosto, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas, que recentemente11passou a albergar o regime atinente às comunicações eletrónicas não solicitadas (arts. 13º e 13º-A). Merece ainda especial referência, neste contexto, o Decreto-Lei 57/2008, de 26 de março, concernente às designadas práticas comerciais desleais e com particular importância em matéria de publicidade enganosa.

A competência para iscalizar o cumprimento do descrito regime jurídico da publicidade e para proceder à instrução e decisão dos respetivos processos de contraordenação e aplicação de coimas e sanções acessórias cabe atualmente à Direção-Geral do Consumidor (DGC), em conformidade com o disposto no art. 13º, n. 2, al. f), do Decreto-Lei 126-C/2011, de 29 de dezembro, e no art. 2º, n. 2, al. j), do Decreto Regulamentar 38/2012, de 10 de abril, sucedendo, assim, nas atribuições da extinta Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria Económica e de Publicidade. A especiicidade das matérias poderá conduzir ao acometimento das competências iscalizadoras para entidades como, inter alia, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), a Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. (Infarmed), a Direção-Geral da Saúde ou o Banco de Portugal. A DGC poderá outrossim solicitar a intervenção da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), em matéria de práticas comerciais desleais, para a efetiva execução da sua ação (cfr. art. 19º, n. 3, do Decreto-Lei 57/2008, de 26 de março).

Ora, o delineado quadro legal, com salvaguardas pontuais, é, a nosso ver, completo, mas absolutamente ineicaz. Basta passarmos alguns minutos em frente

Inúmeras são as vantagens apontadas à autorregulação

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ao televisor para constatarmos que dispositivos como a proibição de intervenção de menores nas mensagens publicitárias (art. 14º, n. 2, do Código da Publicidade), ou a proibição de publicidade de bebidas alcoólicas entre as 7 e as 22 horas e 30 minutos (art. 17º, n. 2, do Código da Publicidade), ou mesmo o tempo reservado à publicidade televisiva (art. 40º da Lei da Televisão), são impune e reiteradamente violados. Este estado de tolerância à ilicitude parece-nos dever-se à...

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