Ponto de empresa virtual. Pretensão renovatória e demais instrumentos de tutela. Vedação à usurpação 'indireta' do ponto de negócio (por meio da retomada do objeto da locação). Atos subsequentes de concorrência desleal praticados pelo retomante

AutorEstevan Lo Ré Pousada
Ocupação do AutorBacharel, Mestre (2006) e Doutor ('summa cum laude') em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (2010)
Páginas119-157

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Estudo previamente publicado na Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro 143 (2006), pp. 42-65.

1. Apresentação do problema

Ressalva preliminar. Antes que se dê início ao presente estudo, faz-se necesssário observar que os fatos a seguir descritos são reais – tendo resultado, inclusive, em uma demanda judicial sem decisão de mérito até o momento em que foi redigido este ensaio. Fazemos questão de ressaltar tal circunstância uma vez que as particularidades que envolvem a matéria de fato a seguir descrita podem ensejar dúvidas quanto às peculiaridades do ajuste havido entre as partes, quanto a extensão das faculdades contratuais estabelecidas e ainda no que concerne ao prazo de vigência do contrato concluído pelas mesmas.

Critério de escolha do caso concreto selecionado. A despeito de não havermos participado da discussão judicial nas qualidades de interessado

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ou advogado, nossa atenção foi despertada pela fundamentação jurídica utilizada pelas partes para a defesa de suas respectivas pretensões; e em particular, pela ausência de qualquer remissão ao instituto do ponto de empresa – bem como à riqueza que a matéria de fato oferece para o desenvolvimento do conceito de ponto virtual adiante abordado1.

Síntese da questão I: da celebração do ajuste. O problema havido entre as partes pode ser assim sintetizado: a empresa “A” – que tem por objeto social a exploração comercial de televendas – celebrou verbalmente contrato com “B” (emissora de radiodifusão de sons e imagens), a fim de que esta, à custa do pagamento de uma retribuição mensal “x”, veiculasse programação inteiramente produzida pela primeira, durante um intervalo de cerca de 22 (vinte e duas) horas diárias.

Síntese da questão II: da eficácia do ajuste. A avença perdurou por aproximadamente 11 (onze) anos, ao cabo dos quais a emissora “B” dirigiu notificação à empresa “A”, comunicando seu desinteresse em prosseguir na execução do contrato, outorgando a esta o prazo de 90 (noventa) dias para a veiculação das últimas produções por meio da infra-estrutura da denunciante.

Síntese da questão III: o comportamento das partes após a denúncia do contrato. Após o encerramento das transmissões do programa “alfa” – produzido por “A” – pela denunciante, a empresa “A” passou a exibi-lo por meio de canal de televisão recém-adquirido pelo grupo econômico por

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ela representado. Paralelamente, a emissora “B” passou a transmitir em seu canal de televisão programa “beta” (por ela própria desenvolvido) destinado ao mesmo público alvo do programa “alfa”; além disso, sobreveio notícia tanto da contratação pela emissora “B” de ex-funcionários da empresa “A” (apresentadores e pessoal técnico-administrativo), como da captação de clientela mediante divulgação de informações falsas – dentre as quais a de que a o programa “alfa” somente seria veiculado em canais de televisão por assinatura (televisão fechada).

Síntese da questão IV: do ajuizamento de ação judicial pela empresa “A”. Tal ordem de acontecimentos ensejou o ajuizamento de ação de indenização pela empresa “A” contra a emissora “B”, tendo por fundamento não apenas a violação a direitos patrimoniais e morais de autor (de titularidade daquela e de terceiro), como a alegação de prática de atos de concorrência desleal.

Objeto de investigação: prática de atos de concorrência desleal. A despeito de eventual excesso quanto à síntese promovida, este nos parece o relato da matéria de fato que representa a controvérsia deduzida em juízo e ora submetida à apreciação; por oportuno, merece destaque a circunstância de que não pretendemos abordar, neste estudo, eventual violação a direitos patrimoniais e morais de autor – o que poderá e deverá ser efetuado em sede própria – estando nossa investigação centrada na análise da prática de atos de concorrência desleal pela emissora “B”, sob um aspecto muito peculiar.

Objeto de investigação: análise do ponto de empresa exclusivamente virtual e eventual prática de atos de concorrência desleal. Com efeito, não pretendemos analisar as implicações da forma de apresentação dos programas “alfa” e “beta”, nem suas eventuais semelhanças (necessárias ou parasitárias); nossa linha de indagação é consideravelmente mais estreita e poderia ser sintetizada nas seguintes questões: como poderia ser qualificado o contrato celebrado entre a empresa “A” e a emissora “B”? Qual a finalidade da contratação sob a perspectiva da empresa “A”? Qual a relevância do objeto contratual (vinte e duas horas diárias de veiculação ininterrupta durante um intervalo de onze anos) em face do fundo de empresa de “A”? Poderia ser vislumbrado um ponto de empresa virtual na grade de programação da emissora “B”? Qual a disciplina jurídica subsidiariamente aplicável à avença estabelecida pelas partes? Caberia prorrogação compulsória do contrato por iniciativa de “A”? Teria a empresa “A” direito

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a indenização em decorrência da sobrevalorização da grade de programação da emissora “B” após o interregno de vigência contratual? Teria a empresa “A” alguma exceção de direito material a ser manejada contra a denúncia formulada pela emissora “B”? O contexto da comportamento das partes após a extinção da relação jurídica contratual evidencia a prática de atos de concorrência deslealfi

Encerramento da apresentação e início das investigações. A fim de responder a tais questionamentos é que iniciamos a presente pesquisa.

2. Qualificação e análise funcional do contrato celebrado entre as partes: o paulatino desenvolvimento do “ponto” empresarial da empresa “A”

O problema da qualificação contratual. Conforme relatado pouco acima, ao concluírem verbalmente sua avença, as partes contratantes não fizeram menção à qualificação do ajuste celebrado – e tão pouco à disciplina jurídica a este subsidiariamente aplicável. Preocupando-se tão somente com as prestações respectivas, tinham em mente tão somente a eficácia contratual, não levando adiante maiores perquirições sobre a natureza jurídica do acordo estabelecido2. Tendo-se em vista a complexidade das

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obrigações estipuladas, cabe indagar: a que modelo normativo (tipo contratual) pode ser reconduzido o negócio jurídico celebrado3Estrutura contratual: obrigações cometidas às partes contratantes. A análise puramente estrutural das obrigações cometidas às partes – seja à emissora “B” [cessão de uso e gozo de grade de programação (durante vinte e duas horas diárias) e veiculação das produções previamente desenvolvidas pela empresa “A”]; seja à empresa “A” (pagamento da importância mensal “x”) – por si somente, não permite entrever com a clareza necessária qual das obrigações da emissora prepondera. De fato, sob uma perspectiva puramente estrutural, podemos tão somente afirmar que se tem um contrato bilateral, sinalagmático (genética e funcionalmente), oneroso, comutativo e de execução não-simultânea4; entretanto, resta saber se

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dentre as obrigações atribuídas à emissora “B” prevalece a cessão de uso e gozo da grade de programação ou a obrigação de veicular o material previamente entregue pela empresa “A” – vale dizer, se temos diante dos olhos um contrato de locação com obrigação secundária de veicular (fazer) ou um contrato de prestação de serviços técnicos especializados (realizados por meio da infra-estrutura representada pelo canal de televisão de titularidade da emissora “B”).

Funcionalidade contratual: utilidade. A análise funcional do contrato celebrado entre as partes é de extrema valia; descoberta qual das obrigações da emissora “B” prepondera, imediatamente se tem definido o regramento jurídico aplicável, subsidiariamente, à espécie discutida (por meio da alusão ao tipo contratual predominante)5.

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Comparação entre as obrigações da emissora “B”: preponderância da cessão de uso e gozo da grade de programação. De que vale à empresa “A” a obrigação, por si só, de veicular os programas de televisão por ela previamente produzidos, sem que tenha sido assegurada a esta a disponibilidade quanto ao uso e fruição de parcela fixa da grade horária de programação da emissora “B”? Parece-nos que muito pouco6. Em contrapartida, seria possível à empresa “A” veicular por si própria a produção por ela inteiramente desenvolvida – se assim o permitisse a emissora “B” (franqueando acesso à sua infra-estrutura e utilização de suas instalações)? Certamente sim. A simplicidade de tal análise nos parece revelar que a obrigação de cessão de uso e fruição de grade horária de programação sobreleva a obrigação de veicular a produção de “A”.

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Análise funcional da relação entre as obrigações da emissora “B”: caráter secundário do dever de veicular. Por que razão a emissora “B” não cedeu a infra-estrutura de seu canal de televisão, celebrando um contrato de locação que tivesse por objeto esta última? Talvez para não ter de suportar o inconveniente do exploração direta de suas...

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