O poder judiciário

AutorHugo Cavalcanti Melo Filho
Páginas27-34

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1.1. A separação dos poderes

O princípio da separação dos poderes, celebrizado na obra de Montesquieu, foi idealizado em um momento histórico marcado pela pretensão da burguesia de limitar o excessivo poder político da monarquia absoluta, com o fito de assegurar a liberdade individual.

O intervencionismo estatal deixara de ser necessário, em face da consolidação da empresa capitalista e da hegemonia econômica da burguesia. Ansiava a classe burguesa, antes, a mais ampla liberdade, para lograr expandir, ilimitadamente, a economia capitalista.

O ideário liberal centra-se nas ideias de garantia de direitos individuais ao cidadão e da separação dos poderes, ambos incorporados ao constitucionalismo, a partir de duas vertentes principais, a história política da Inglaterra e o Iluminismo francês do século XVIII.

Em que pese a evidência de que foi Montesquieu quem melhor sistematizou a teoria da separação, inegável é a inspiração aristotélica na sua formulação. Com efeito, na Política (Livros III, XI e VI, XI) encontram-se os princípios que Montesquieu aplicará em sua obra L’Esprit des Lois, havendo Aristóteles distinguido a assembleia geral, o corpo de magistrados e o corpo judicial, advertindo quanto ao perigo de se atribuir ao mesmo indivíduo o exercício do poder.

Depois de Aristóteles, Marsílio de Pádua, Grotius, Wolf, Puffendorf, Bodin, Swift e Bolingbroke (BONAVIDES, 1976:148) intuíram em sentido bastante aproximado da concepção de Montesquieu.

No entanto foi, certamente, John Locke, em sua obra Dois tratados sobre o Governo Civil, quem, de forma mais autêntica, delineou a teoria da separação

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de poderes, que seria utilizada por Montesquieu como técnica de salvaguarda da liberdade individual. No Capítulo XI do Segundo Tratado, após afirmar ser o poder legislativo o poder supremo da sociedade política, obtempera Locke que “a autoridade legislativa, ou suprema, não pode arrogar-se o poder de governar por meio de decretos arbitrários extemporâneos, mas está obrigada a dispensar justiça e a decidir acerca dos direitos dos súditos por intermédio de leis promulgadas e fixas, e de juízes conhecidos e autorizados” (1998:506). Depois, no Capítulo XII, expõe o seu pensamento quanto ao perigo que consiste em “as mesmas pessoas que têm o poder de elaborar leis tenham também em mãos o de executá-las”, afirma a necessidade de existência de um poder permanente “que cuide da execução das leis que são elaboradas e permanecem vigentes” (ibid.: 514-515), separando-se os poderes legislativo e executivo.

Aí estão firmadas as premissas da doutrina que será apresentada em O Espírito das Leis. Inquestionavelmente, Montesquieu reproduzirá as impressões lockeanas, no Livro XI, Capítulo VI, de sua célebre obra, afirmando que “quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistrados o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade [...] Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo [...]”3 (1995:107).

Foi, sem dúvida, a preocupação de mitigar o poder do Estado, paralelamente à função constitucional limitadora, que alçou a separação dos poderes à condição de dogma do Estado Moderno. Reflexo eloquente de tal exigência é a Declaração de Direitos da Virgínia, de 1776, que insculpiu, em seu texto, a regra de “que os poderes executivo e legislativo do Estado deverão ser separados e distintos do judiciário” (DALLARI, 1986:184), bem assim da posterior Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que também albergou, no art. 16, este princípio como dogma constitucional: “Toute societé dans laquelle la garantie des Droits n’est pas assurée, ni la séparation des Pouvoirs determinée, n’a point de Constitution”4.

A partir daí, a exigência da separação dos poderes reverberará em todos os movimentos constitucionalistas. Publius, pela pena de James Madison, no 47º Artigo Federalista, afirma que

o acúmulo de todos os poderes, legislativo, executivo e judiciário, nas mesmas mãos, seja de uma pessoa, de algumas ou de muitas, seja hereditário, autodesignado ou eletivo, pode ser justamente considerado a própria definição de tirania. (MADISON; HAMILTON; JAY, 1993:331)

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Associada à ideia de democracia, a separação dos poderes foi consagrada nas constituições de Estados em quase todo o mundo, principalmente pela implantação de um sistema de freios e contrapesos. A evolução prática da divisão determinou a percepção hodierna de que a teoria da separação não passa de mito. O mito, segundo Canotilho (1977:104), está em atribuir a Montesquieu um modelo teórico que conduza à teoria dos três poderes rigorosamente separados, quando a ciência política já demonstrou que tal teoria jamais existiu na obra de Montesquieu, eis que expressamente admitida a interferência de um poder em relação ao outro. O fato é que a teoria tratava, efetivamente, da combinação de poderes, como solução para o intrincado problema da harmonização das potências então existentes: rei, nobreza e burguesia.

Sendo...

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