Poder familiar e o costume de retenção de bens de incapazes

AutorGelson Amaro de Souza
CargoProfessor da Universidade Estadual do Norte do Paraná (Campus de Jacarezinho-PR)
Páginas5-10

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Introdução

Citando Joseph Goebbels, Paulo Castilho1 lembra que ele foi o criador da frase “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Complementa dizendo que no direito às vezes ocorre algo semelhante, mas não como uma mentira deliberada, porque acredita-se em alguns enunciados ou jargões, de tal forma que quem os pronuncia crê estar diante de uma verdade.

Essa situação aparece com frequência no âmbito do direito, quando se repete um enunciado sem objeções, como acontecia com a prisão do depositário judicial2, a qual, mesmo sem lei, era tida como legal, bem como com a fraude à execução, que sempre foi considerada de natureza objetiva, quando se sabe hoje que toda fraude só pode ser subjetiva3. O mesmo se dava com a decisão do juízo incompetente4 e com o julgamento de mérito sem citação do réu, que se consideravam nulos5, com a propalada inexistência de mérito e coisa julgada nos processos cautelares6 e de execução7, a divulgada improrrogabilidade8 da competência absoluta, a inexistência de coisa julgada na ação de alimentos9, entre outros tantos, quando se sabe hoje que nada disso era verdade.

Estes mitos foram sendo afastados aos poucos e outros haverão de ser afastados, como este de se reter dinheiro de incapaz até que se torne capaz, quando se sabe que nem todo incapaz um dia será capaz. O incapaz por doença mental muito dificilmente se tornará capaz. Quando a pessoa é incapaz, ela será representada por seu representante legal, que haverá de ser sempre capaz. Logo, não existe razão alguma para se pretender reter o dinheiro do incapaz até que este venha adquirir a capacidade.

1. Pessoa humana

Talvez fosse melhor falar-se em “pessoa” e não em “pessoa humana” para evitar possível pecha de pleonasmo. No entanto, utiliza-se desta expressão para diferenciar a pessoa humana (pessoa física) da pessoa jurídica, que não é pessoa real, mas assim considerada por ficção.

O Código Civil em nenhum momento procurou definir a pessoa humana, apenas inicia dizendo que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil (art. 1º), o que abrange tanto a pessoa física (humana) como a pessoa jurídica (ficção).

Ao tratar da pessoa humana, muda de toada e diz que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas sendo salvaguardados os seus direitos desde a concepção (art. 2º). Dessa formulação ressalta certa dissonância, pois, se a pessoa tem direitos a serem resguardados desde a concepção, é porque desde esse evento ela já tem personalidade10, pois sem esta não se adquirem direitos.

Desta forma, e à luz do texto legislativo, pode-se dizer que o nascituro tem direitos desde a sua concepção (art. 2º do CC) e, assim sendo, tem personalidade e capacidade de ser parte, como já se tratou alhures11. Se assim é para com o nascituro, com maior razão há de ser com relação à pessoa já nascida. Ainda que se possa dizer que essa pessoa não tenha capacidade de agir por si mesma, jamais se poderá negar que ela tem capacidade, haja vista que o art. 1º do Código Civil anuncia que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.

2. Pessoa incapaz

Tornaram-se corrente no dia a dia as expressões “pessoa capaz” e “pessoa incapaz”, o que tem levado muita gente a pensar que a incapacidade aqui referida é incapacidade de adquirir direito, o que corresponderia à falta de personalidade. Mas, não é isso. A incapacidade a que se refere o Código Civil é apenas a falta de capacidade para exercer por si mesma os atos da vida civil. Nada tem a ver com a capacidade para a aquisição de direito (personalidade jurídica).

Depois de dizer no artigo 1º que toda pessoa (sem exceção) é capaz de direitos e deveres na ordem civil, o Código Civil afirma que certas pessoas são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil (art. 3º). Não afirma o Código que as pessoas incapazes assim o são para adquirem direitos: ao contrário, informa que apenas não podem exercer por si mesmas os atos da vida civil. Uma coisa é não poder exercer pessoalmente os atos da vida civil, outra bem diferente seria não poder ter direitos. Direitos o incapaz tem – só não pode exercer direta e pessoalmente por si mesmo, mas tem direito e este poderá ser exercido indiretamente através de representante legal.

Entre as pessoas incapazes elencadas no art. 3º do Código Civil, encontram-se os menores de 16 anos, os que mesmo sendo maiores têm deficiência mental que impeça o seu discernimento e aqueles que não possam exprimir a sua vontade. Nesses casos quem exerce os atos diretamente será o representante legal doPage 6incapaz, para proteger seus direitos. Mas o incapaz tem direito e tem dignidade humana, tanto os seus direitos, bem como a sua dignidade estão salvaguardados pela Constituição Federal. Impedir que o incapaz tenha acesso ao seu direito é atentar contra ele, bem como contra a sua dignidade humana.

3. Poder familiar

Conforme ensinam Tartuce e Simão12, poder familiar pode ser conceituado como sendo o poder exercido pelos pais em relação aos filhos. Desta forma, poder familiar é aquele que têm os pais para agir em nome dos filhos menores (incapazes) para salvaguardar seus direitos e proporcionar-lhe, educação, segurança, saúde, alimentação, vestuário etc.

O art. 1.634 do Código Civil descreve as atribuições cabentes ao exercício do poder familiar, tais como dirigir a criação e a educação dos filhos, bem como representá-los até os dezesseis anos e assisti-los entre 16 e 18 anos, matéria esta que foi repetida no artigo 1.690. Já o artigo1.689, afirma que os pais têm a administração dos bens dos filhos. Basta isso para ficar bem claro que cabe aos pais administrar os bens dos filhos, até porque ninguém melhor do que os pais para conhecer as necessidades dos filhos13. Se podem administrar os bens dos filhos, logo podem administrar o dinheiro a estes pertencente, porque dinheiro também é bem. Aliás, os pais sempre se interessam pelo bem dos filhos, por isso a prioridade em dar a administração dos bens dos filhos aos pais14.

4. Princípio obstativo de intervenção

O mundo moderno está a caminho da libertação do indivíduo pelo Estado. O Estado moderno já não admite tanta intervenção do poder nas hostes familiares. Não é por acaso que, seguindo esta tendência, o Código Civil proíbe qualquer intervenção, seja por ente público, seja por particular, no seio familiar (art. 1.513 do CC). Por esta norma, é defeso a qualquer pessoa de direito público ou particular interferir na comunhão instituída pela família, o que vem reforçado pelo art. 1.565, § 2º, do CC, pelo qual o planejamento e a administração familiar são de livre iniciativa e decisão familiar, proibida qualquer coerção por parte de entidade privada ou pública.

Tendo os pais o poder familiar e o direito à administração dos bens dos filhos incapazes e sabendose que aqueles devem ter a plena liberdade na solução das questões de interesse familiar, pela presença do princípio da não intervenção ou princípio obstativo de intervenção (art. 1.513 do CC), não se vê razão para se manter a ortodoxia e obsoleta atuação do Judiciário para reter dinheiro de incapazes, para que fique depositado à disposição da Justiça, sem nenhum amparo legal15.

Se o artigo 1.513 proíbe a intervenção de qualquer pessoa pública ou privada, também está proibido o Judiciário de se intrometer nas questões familiares. Essa intromissão na vida privada da família viola a norma do artigo 1.513 do CC e ainda a Constituição Federal (art. 5º,II), bem como os princípios da dignidade da pessoa humana e o maior interesse do incapaz (arts. e do ECA). Sobre este aspecto observam Tartuce e Simão16 que esse princípio mantém relação direta com o princípio da autonomia privada que também deve existir no âmbito familiar.

5. Retenção de dinheiro de incapaz

Tornou-se costume (péssimo costume) no seio do Judiciário nacional impor a retenção de dinheiro de incapaz, sem que para isto exista lei17. Não se sabe a origem deste costume, visto que lei não existe e nunca existiu para autorizar tal crueldade com o incapaz, que no seio social é o que mais sofre em razão de sua hipossuficiência. Sabe-se, todavia, que tal medida é de uso corrente, mesmo em desrespeito ao artigo 1.513 do Código Civil e artigo 5º, II, da Constituição Federal.

Parece que tal costume surgiu de equivocada leitura do artigo 432 do Código Civil revogado, que estipulava que os tutores não poderiam conservar em seu poder dinheiro de seus tutelados, além do necessário para as despesas ordinárias. Todavia, é de se ver que aquela norma jamais se dirigiu aos pais, senão apenas aos tutores. Mesmo ao tempo do revogado Código, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro julgou e determinou a liberação do dinheiro depositado em juízo18.

Com isso há uma quebra do princípio obstativo de intervenção (art. 1.513 do CC), bem como dos princípios da proteção à privacidade19 e da dignidade da pessoa humana.

6. Beneficiário da retenção

É inescondível que o único beneficiado em situação como esta é o banco que fica com o depósito – entidade de direito privado que passa a administrar e aplicar o dinheiro em proveito próprio e em prejuízo do titular do dinheiro, que é, no caso, o menor necessitado, incapaz e indefeso.

A sociedade grita por todos os cantos que o Poder Executivo no Brasil vive a serviço dos bancos e dos banqueiros, em razão dos constantes socorros que se dá aos bancos em prejuízo da educação, saúde e escola para a grande maioria dos administrados.

Se em época passada pensou-se que a retenção de dinheiro poderia beneficiar o incapaz, este mesmo pensamento, de todo equivocado...

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