Direitos fundamentais, princípios penais constitucionais e garantismo penal

AutorAndré Pedrolli Serretti
Páginas2-27

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1 O garantismo penal - Uma introdução

O garantismo penal, conforme preleciona seu próprio idealizador, o professor italiano Luigi Ferrajoli, pode possuir vários significados123. Em síntese, pode-se defini-lo como o movimento jurídico-penal que busca a legitimação da intervenção punitiva do Estado, pela garantia da observância por este a direitos e garantias individuais e coletivos. Ou seja, tanto o direito material penal quanto o processual penal e a execução penal devem seguir certos preceitos para que não se desvirtuem dos objetivos do Estado Constitucional e Democrático de Direito, qual seja, proteger direitos fundamentais. Conforme se verá, a intervenção estatal só poderá validamente acontecer se estiver de acordo com os ditames estabelecidos na Constituição, esta, verdadeiro limite formal e material à atuação estatal na seara penal. Ainda, para Ferrajoli:

Garantismo designa um modelo normativo de direito, precisamente, no que diz respeito ao Direito penal, o modelo da estrita legalidade, próprio do estado de direito, que sob o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano político se caracteriza como uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos 4 .

Como podemos constatar, um sistema normativo que se paute por tais pressupostos atende ao modelo de garantia à tutela de direitos fundamentais.

Pode-se entender garantismo, ainda, como instrumento de aferição da validade da intervenção estatal, em casos concretos. Em outras palavras, depois de estabelecidos os parâmetros (princípios constitucionais), a serem observados pelo Estado, ao fazer suas normas infraconstitucionais e julgar, o garantismo pode ser visto como um instrumento para observar se tais preceitos estão sendo de fato cumpridos. É a observação das práticas forense e legislativa, para verificar se estão sendo os princípios constitucionais observados, ou seja, se o ser está em consonância com o dever-ser. Assim se pode estabelecer graus de garantismo a serem perseguidos pelos agentes do direito. Para Page 3 Ferrajoli, "o garantismo jurídico opera como doutrina jurídica de legitimação e, sobretudo, de perda da legitimação interna do direito penal, que requer dos juízes e dos juristas uma constante tensão critica sobre as leis vigentes, (...)."5.

Ainda, de acordo com um terceiro significado de garantismo, pode-se dizer que este designa um objetivo a ser alcançado, não mais interno, mas externo ao direito penal, qual seja a proteção de bens jurídicos, sendo este o critério para se verificar a legitimação ou não dos objetivos do sistema penal. Pode-se dizer que "o garantismo pressupõe a doutrina laica da separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre ponto de vista interno e ponto de vista externo na valoração do ordenamento, (...)."6.

2 Bases teóricas do garantismo penal

Com fundamentos claramente iluministas, o pensamento garantista surge como tentativa de resgatar valores de proteção do indivíduo frente ao sistema penal, através da releitura da legitimação do Estado pela proteção de garantias individuais. Partindo-se da premissa epistemológica que o direito penal não é capaz de ser legitimado por si mesmo, ou seja, não pode ser tido como seu próprio legitimador, pois careceria ele de objetivo inerente, em si, em um Estado Constitucional e Democrático de Direito, nasce a necessidade de se estabelecer um objetivo a ser alcançado, externo ao direito penal. Consoante tal modelo estatal, que legitima a sua intervenção, em qualquer campo, com o objetivo da promoção do bem comum e dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, faz-se necessário que este, além de prever como direitos individuais tais valores, também efetivamente os garanta. Isso posto, em um modelo de Estado Democrático de Direito, todos os ramos do direito devem, por sua vez, se adequar a tais núcleos mandamentais normativos, quais sejam, os princípios e valores constitucionais, e em especial, a dignidade da pessoa humana.

E no que toca ao direito penal, deve este também buscar a garantia da efetivação de princípios e direitos inerentes aos sistemas constitucionais democráticos contemporâneos. Deve este ramo do direito tutelar tais valores constitucionalmente garantidos a todos, a fim de que se coadune com a ordem constitucional e assim possa intervir na sociedade, validamente. Portanto, conclui-se que deve o direito penal tutelar bens jurídicos, não só os bens jurídicos expressamente previstos no texto constitucional, mas também, os compatíveis com sua ordem de princípios, conforme indica o art. 5º, § 2º, da Constituição da República7. O objeto de tutela de um direito penal Page 4 constitucionalmente orientado sempre será, imediatamente, bens jurídicos constitucionalmente garantidos, em consonância com os direitos fundamentais.

Retomando tópico anterior, um terceiro significado de garantismo penal pode ser relacionado à tutela de algo naturalmente externo à ordem jurídica, ou seja, à tutela de bens jurídico-penais.

3 Bem jurídico-penal

Bem jurídico, para a quase totalidade dos cientistas do direito penal, é o objeto de proteção desse ramo do ordenamento jurídico. Aqui adotaremos tal proposição como premissa, a despeito de minoritárias, porém honrosas, opiniões em contrário8, conforme se verá à frente. A norma penal tutela o bem jurídico ao vedar a atuação concreta de alguém que tende a lesá-lo ou que efetivamente o lesa. Contemporaneamente, pode-se entender por bem jurídico-penal um juízo positivo de valor a cerca de algo, ou seja, algo ao qual a ordem jurídica atribui a característica de ser de preferível preservação. Tal juízo, para que seja materialmente válido, deve estar ancorado nas necessidades humanas individuais e sociais merecedoras de proteção, conforme os valores culturais vigentes no seio da sociedade. Conforme ensina Luiz Regis Prado:

Assim, originariamente, com base na mais pura tradição neokanista, de matiz espiritualista, procura-se conceber o bem jurídico-penal como valor cultural - entendida a cultura no sentido mais amplo, como um sistema normativo. Os bens jurídicos têm como fundamento valores culturais que se baseiam como em necessidades individuais. Estas se convertem em valores culturais quando são socialmente dominantes. E os valores culturais transformam-se em bens jurídicos quando a confiança em sua existência surge necessitada de proteção jurídica 9 .

Em artigo publicado no ano de 1834, o jurista alemão Johann Michael Franz Birnbaum10, pioneiro no tema, escreveu que bem jurídico-penal seria tudo aquilo que a lei penal tutelava. De acordo com tal conceito, breve e desprovido de valoração ética, e partindo-se do pressuposto que o bem jurídico é o legitimador do direito penal, pode-se concluir que podemos utilizar tal construção doutrinária positivista para chegar a qualquer conclusão, inclusive para legitimar um direito penal que negue direitos e garantias fundamentais. Assim se observa que tal conceito, por conceber o bem-jurídico como algo interno à ordem jurídica, desvencilha-se da função crítica que este pode exercer11. Page 5

Muito já se debateu sobre o tema, algo que, até mesmo nos dias atuais é objeto de tormentas e dissensos no meio acadêmico. Em fases mais remotas, em que o direito penal era caracterizado como privatista, era corrente o entendimento de que tal ramo do ordenamento jurídico servia à proteção de direitos subjetivos12. Tal concepção já não pode ser mais sustentada visto que hoje há em nosso ordenamento jurídico a previsão da tutela penal de bens supraindividuais, tais como o meio ambiente e o patrimônio artístico e cultural.

Nas últimas décadas, surgiram pelo mundo juristas de escol, tais como Günther Jakobs, que negam a pertinência de tal instituto, em virtude de seu conceito ser inadequado e até mesmo inaplicável à totalidade das relações jurídico-penais.

O posicionamento a seguir se encontra mais coerente com os atuais conhecimentos da sociologia, sobretudo com os frutos da pesquisa de Niklas Luhmann13, relativos ao funcionalismo sistêmico, que vê a sociedade como um sistema, e o direito como um subsistema desta que visa regular as relações sociais através da institucionalização e estabilização, por um processo racional, de expectativas de conduta presentes na sociedade.

No âmbito do sistema social vislumbramos dois tipos de expectativas apontadas por Luhmann14, expectativas cognitivas, que representam expectativas comuns à maioria dos membros da sociedade, mas que se inobservadas não geram sanção formal pelo Direito, e expectativas normativas, que se inobservadas geram para quem as violou a sanção correspondente do sistema do Direito.

É o subsistema do Direito quem tem a função de estabelecer as expectativas normativas gerais a serem observadas por todos os indivíduos, de todos os sistemas a fim de que o sistema social funcione.

Para visualizar a importância de tal estrutura baseada em expectativas, podemos observar que nós somente saímos de casa porque acreditamos que não seremos mortos, e que nossa liberdade sexual será respeitada se não quisermos nos relacionar com alguém. Sem a confiança em tais expectativas, sequer levantamos pela manhã15.

Estas e outras se constituem em expectativas normativas que viabilizam o funcionamento do sistema social, e consequentemente, a vida em sociedade, de cuja observância todos os indivíduos estão obrigados e se beneficiam.

Fundado nos lineamentos anteriores, brevemente expostos, Jakobs aduz que a função precípua do Direito Penal é garantir a configuração normativa da...

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