A necessidade de flexibilização do princípio da irredutibilidade salarial na negociação coletiva brasileira como corolário do direito fundamental ao pleno emprego

AutorClaudia Campas Braga Patah
Ocupação do AutorAdvogada Trabalhista. Professora de Direito Coletivo das Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU. Mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP
Páginas16-27

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1. Introdução

Desde a conclusão do meu mestrado em Direito do Trabalho, em 2002, pela PUC/SP, sob a orientação do Professor Renato Rua de Almeida, tenho grande interesse pelo estudo dos efeitos gerados pela globalização nas negociações coletivas, com ênfase na flexibilização dos direitos trabalhistas, desde que respeitados os direitos fundamentais dos cidadãos-trabalhadores. De volta à academia no primeiro semestre de 2013, assistindo às aulas de Direito do Trabalho do mesmo mestre, como ouvinte e com a finalidade de obter mais conhecimentos nesse ramo do Direito, verifico que ainda permanece atual a minha ideia originária de 2002.

Em nossos estudos daquela época, na elaboração da dissertação do Mestrado2, verificamos que, no cenário econômico mundial da década de 1970, decorrente da crise do petróleo, o Estado Social que se caracterizava pela intervenção do Estado e pelo emprego de medidas assecuratórias dos direitos sociais passa a ser questionado pela sociedade.

Aliado a esse fato, o mundo passa pelo fenômeno da globalização decorrente da evolução político-social da humanidade e dos drásticos avanços tecnológicos observados nos anos anteriores.

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Assentada nesse novo paradigma econômico mundial, surge a extrema competitividade entre as nações, em decorrência da progressiva internacionalização dos mercados, de bens, de serviços e créditos, induzida pela redução de tarifas de exportação e de obstáculos aduaneiros e pela padronização das operações mercantis.

Dentro desse contexto de competitividade - fruto da globalização que ultra-passa as barreiras nacionais -, ocorre uma série de mudanças.

Resta induvidoso que a globalização abala todo o alicerce jurídico, por se constituir em fonte geradora de desequilíbrio nos mercados financeiro e de trabalho, em que países com superpopulação e com escassez de normas de proteção ao trabalhador produzem a preço inferior seus produtos e invadem outras nações com eles, gerando, assim, um maior desemprego nesses países.

Nessa conformidade, a necessidade de harmonização das diferenças geoeconômicas desencadeadas não mais admite a ideia clássica do Estado Intervencionista, uma vez que a competição acentuada, a premência de um controle orçamentário e de redução das políticas assistencialistas obstativas ao processo de globalização modificam sua estrutura e impõem, por assim dizer, o afrouxamento da soberania, em favor da viabilização econômica e das liberdades civis.

Por outro lado, o Consenso econômico neoliberal também conhecido por Consenso de Washington, que diz respeito à organização da economia global, incluindo a produção, os mercados de produção e serviços, mercados financeiros, traz restrições à regulamentação estatal, hipótese em que os Estados Nacionais ficam subordinados às agências multilaterais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio. Segundo explana Boaventura de Souza Santos3, o enfraquecimento do Estado é pré-condição para o fortalecimento da sociedade civil.

Por tais razões, no fenômeno da declinação da soberania, delineia-se uma nova exigência: os direitos fundamentais dos trabalhadores devem ser preservados tanto quanto possível, por intermédio de uma normatização supraestatal de modo a tornar factível a integração desses mesmos direitos nos respectivos sistemas jurídicos internos, visando à crescente onda libertária da economia mundial.

A adoção da valorização dos Direitos Fundamentais encontra supedâneo no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem: "uma lei maior de natureza ética, cuja observância independe do direito positivo de cada Estado. O fundamento dessa lei é o respeito à dignidade da pessoa humana. Ela é a fonte das fontes do direito".

Tratar-se-ia, pois, de um típico contrapeso à nova ordem econômico-tecnológica, atentos à circunstância de que esta (a economia) não se mantém sem a integridade daqueles (os trabalhadores).

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No Brasil, é importante notar que o Direito do Trabalho atribui valor ao trabalho não em decorrência das possibilidades econômicas, mas sim em decorrência das possibilidades humanas que lhe são inerentes, tendo-se em conta a moral juridicidade expressa no art. 7º da Constituição Federal e - mais ainda - reafirmada por seus arts. 1º, incisos II e IV ("a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho"), 170, caput ("ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano"), 170, inciso VIII ("busca do pleno emprego") e 5º, XXIV (a propriedade privada "atendente da função social").

Daí porque entendemos imprescindível valorizar a negociação coletiva como forma de autocomposição dos conflitos coletivos firmada nos princípios fundamentais previstos no nosso ordenamento jurídico, com a finalidade de dar efetividade à justiça social.

2. Da evolução da lei no Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito

Diferentemente do que ocorria no Estado Liberal, a lei era considerada fruto de um parlamento habitado apenas por representantes da burguesia, no qual não havia confronto ideológico porque se supunha uma sociedade homogênea, composta por "homens livres e iguais" e dotados das mesmas necessidades. O Estado tratava todos de forma igual perante a lei, para acabar com os privilégios, típicos do antigo regime. Portanto, o Estado ignorava as desigualdades sociais para privilegiar a liberdade.

O Poder Legislativo era órgão soberano e, portanto, o único legitimado a determinar as condutas e restrições por meio da edição das leis. Essa legitimidade do Legislativo não era colocada em xeque, sob pena de violar a separação dos poderes e o fundamento de legitimidade de toda a ordem política.

As leis eram gerais e abstratas, e aplicadas a todos sem observar as diferenças dos indivíduos, não cabendo ao Poder Judiciário interpretá-las, mas tão somente aplicar a lei ao caso concreto, sem levar em consideração qualquer outro elemento valorativo.

Nesse contexto, conforme alude Luiz Guilherme Marinoni4, surgem grupos - sindicatos, associações de trabalhadores e de empresários - com a finalidade de pressionar o Legislativo a promulgar leis diferenciadas que atendessem a seus anseios.

Com isso, o princípio da legalidade no Estado contemporâneo - Estado Demo-crático de Direito - passa a ser interpretado pelo Poder Judiciário em consonância com os princípios fundamentais previstos na Constituição Federal.

Consoante ensinamento de José Afonso da Silva5:

deve ser destacada a relevância da lei no Estado Democrático de Direito, não apenas quanto ao seu conceito formal de ato jurídico abstrato, geral,

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obrigatório e modificativo da ordem jurídica existente, mas também à sua função de regulamentação fundamental, produzida segundo um procedimento constitucional qualificado. A lei é efetivamente o ato oficial de maior realce na vida política. Ato de decisão política por excelência é por meio dela, enquanto emanada da atuação da vontade popular, que o poder estatal propicia ao viver social modos predeterminados de conduta, de maneira que os membros da sociedade saibam, de antemão, como guiar-se na realização de seus interesses.

A lei, portanto, tem grande relevância no Estado Democrático, pois não mais é considerada fruto da vontade do legislador, como era no Estado Liberal, e passa a ser fruto da vontade popular ou de grupos que fazem pressão nos bastidores do Congresso Nacional. Daí porque o ordenamento jurídico para ser válido e efetivo deve se submeter a um controle que leve em consideração os princípios fundamentais insculpidos nas Constituições e nos Tratados Internacionais.

Nesse sentido, a questão da principiologia dos direitos veio a ser magnanimamente aclarada pelo "garantismo jurídico" nascido das reflexões do jurista italiano Luigi Ferrajoli6, para quem a lógica de aplicação das normas do Direito se firmava a partir das normas constitucionais.

Explica-se: Ferrajoli propôs uma nova forma de valoração das normas jurídicas absolutamente diversa daquela abraçada por Norberto Bobbio, relativa ao trinômio clássico "justiça, validez e eficácia". Para Bobbio, a justiça da norma respeitaria, à sua correspondência, os valores supremos que a teriam inspirado. A validez, por seu turno, espelharia a indagação a propósito da regularidade de sua confecção; e a eficácia diria respeito à sua observância pelos destinatários, de modo que a primeira se circunscreveria à Filosofia do Direito, a segunda, à ciência jurídica e, a terceira, à sociologia.

Ferrajoli, paradoxalmente, trouxe para os domínios do Direito a discussão sobre a justiça das normas mediante a construção abstracionista de outra perspectiva, na qual os valores éticos e políticos seriam absorvidos e...

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