Os direitos da personalidade e a problemática dos transexuais

AutorEric Baracho Dore Fernandes
CargoBacharelando em Direito pela Universidade Federal Fluminense
Páginas69-106

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I Introdução

Nem sempre o fato jurídico se mostra capaz de acompanhar o fato social com a mesma1 velocidade com que este é produzido. Por vezes, a mobilização e luta se fazem necessárias para adequar a situação jurídica de determinado contexto à sua situação de fato. O direito é uma construção social e o meio de atingi-lo é a luta 3 . A comprovação de tal teoria se torna especialmente visível na análise das lutas de minorias sociais pela plena efetivação de seus direitos em qualquer âmbito.

Em especial, as graduais e perceptíveis conquistas dos direitos das minorias transexuais têm se evidenciado no mundo jurídico nas últimas décadas. Desde a década de 70, os brasileiros têm acesso aos meios cirúrgicos para adequar sua situação física à sua situação mental e emocional como alguém do sexo oposto através da cirurgia de redesignação sexual. Contudo, o reconhecimento jurídico dessa prerrogativa não veio de imediato. Pelo contrário. Inicialmente, chegou a ser considerada uma prática criminosa em nosso ordenamento.

Ainda que atualmente não mais se considere tal ato como criminoso, o mero reconhecimento do direito à mudança física não é suficiente para a plena efetivação dos direitos da personalidade para esses indivíduos. É necessário que a situação jurídica dos indivíduos que buscam esse tipo de alteração corresponda a sua situação de fato. E essa necessidade de concretização manifesta-se, por exemplo, através do registro civil. Mais especificamente, o direito à adequação do nome, prenome e sexo no registro civil, de modo a garantir que tais pessoas usufruam plenamente de seus direitos em sua nova condição como alguém do sexo oposto, o que hoje ainda é extremamente polêmico.

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O debate perpassa de forma intensa a categoria jurídica dos direitos da personalidade 4 . Se algumas décadas atrás os códigos civis os previam de forma dispersa e sem sistematização, hoje os direitos da personalidade são teorizados de forma mais precisa, mesmo porque muitos deles foram alçados ao plano constitucional. As constituições passaram a prever expressamente alguns dos direitos da personalidade, tais quais honra e imagem. A conseqüência imediata é que esses direitos que constituem uma situação jurídica existencial adquirem um grau de fundamentalidade formal, ao serem previstos de forma expressa pela Constituição, e material, na medida em que justamente por seu conteúdo existencial, passam a serem vistos como dimensões da dignidade da pessoa humana.

A presente discussão diz respeito, precisamente, a dois direitos da personalidade, em especial quando titularizados por indivíduos transexuais. O direito ao nome civil e o direito ao corpo. De modo a ilustrar como tal debate tem sido travado no âmbito jurídico, o presente artigo busca discutir alguns casos paradigmáticos que tenham por objeto os direitos relativos à condição do transexual. Inicialmente, será traçado um panorama evolutivo de tais direitos em nosso ordenamento jurídico à luz do direito comparado. Em seguida, o artigo trará uma análise dos direitos dos transexuais sob duas dimensões distintas e complementares. A primeira delas, o reconhecimento do direito ao corpo e à mudança de sexo per se, bem como dos direitos da personalidade do indivíduo no âmbito do registro civil. Em seguida, em uma segunda discussão, um breve debate acerca de como o tema vem sendo abordado pelo trabalho do Poder Legislativo, finalizando o artigo com algumas conclusões e questionamentos pontuais.

Contemporaneamente, se questiona se a resposta oferecida pelo Direito vem obtendo sucesso em atender às necessidades e expectativas desse fato social. Estariam tais respostas caminhando na direção de corresponder aos anseios desses indivíduos em obter a plena efetivação de seus direitos? É o que se procura questionar na breve análise a seguir.

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II A evolução da situação jurídica do transexual e da cirurgia de redesignação sexual no ordenamento jurídico brasileiro em uma análise comparada

Preliminarmente, se faz necessário conceituar a característica que define um indivíduo como transexual. Maria Helena Diniz apresenta, de forma clara, as definições de diversos autores:

“Transexualidade é a condição sexual da pessoa que rejeita sua identidade genética e a própria anatomia de seu gênero, identificando-se psicologicamente com o gênero oposto. Trata-se de um drama jurídico-existencial por haver uma cisão entre a identidade sexual física e psíquica. É a inversão da identidade psicossocial, que leva a uma neurose racional obsessivo-compulsiva, manifestada pelo desejo de reversão sexual integral. Constitui, por fim, uma síndrome caracterizada pelo fato de uma pessoa que pertence, genotípica e fenotipicamente, a um determinado sexo ter consciência de pertencer ao oposto. O transexual é portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência a auto- mutilação ou auto-extermínio. Sente que nasceu com o corpo errado” 6 .

Historicamente, o primeiro paciente a ser submetido a uma cirurgia de mudança de sexo foi o soldado norte-americano George Jorgensen, alterando fisicamente seu sexo (de masculino para feminino) que passou a adotar, em 1952, o nome de Christine Jorgensen.

Já no Brasil, a primeira cirurgia de transexualização registrada oficialmente foi datada em 1971, quase duas décadas após o caso Jorgensen. O procedimento foi realizado no (a época) senhor Waldir Nogueira pelo Dr. Roberto Farina. Tendo sido denegado o pedido feito à Justiça Estadual por Waldir Nogueira para retificação de seu nome e sexo no âmbito do registro civil, houve a instauração de inquérito policial para averiguação dos fatos. Ao tomar ciência, o Ministério Público Estadual ofereceu denúncia em face do médico. Ao réu foi imputado o crime previsto no art. 129, § 2°, inciso III do Código Penal: ―Lesão Corporal de Natureza Grave por ter resultado na perda ou inutilização de função‖. Em primeira instância, o juízo da 17 a Vara Criminal de São Paulo (Processo nº 779/76) condenou o réu ao a pena dePage 72dois anos de reclusão, julgando procedente a denúncia, sendo sido o Dr. Roberto Farina beneficiado por sursis, visto se tratar de réu primário.

No entanto, a segunda instância foi favorável ao réu. Após longo julgamento, foi dado provimento ao recurso e o réu absolvido pela 5ª Câmara do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. Dentre as razões que motivaram a decisão, houve o reconhecimento do Tribunal de que a suposta ―vítima‖ do ato realizado pelo médico apresentava uma personalidade totalmente feminina. Não apenas pensava como uma mulher, mas também agia como uma, e, ao apresentar seu depoimento, demonstrou-se extremamente satisfeita com o resultado dos procedimentos médicos. Dessa forma, a adequação ao seu estado físico ao seu estado psicológico se deu como uma maneira de melhorar a qualidade de vida do indivíduo, uma solução terapêutica. Dentre muitos especialistas contemporâneos ao caso 7 , cujos pareceres constaram nos autos do processo, deu seu parecer a Associação Paulista de Medicina 8 :

“Reconhecemos que o senso comum de nossa população ainda não está suficientemente informado, ao contrário de outros países, onde já existe inclusive jurisprudência formada sobre a ação médica nessas alterações e cuja experiência não podemos deixar de reconhecer” 9 .

Esse precedente da justiça paulista constituiu-se como um passo inicial para que o ordenamento jurídico caminhasse na direção de reconhecer tal prática como legítima. É evidente que tal processo de aceitação não tem se dado sem controvérsias ou oposições. Provavelmente, motivado pela comoção causada pelo processo, foi aprovado pelo Congresso Nacional o Projeto de Lei nº. 1909-A de 1979, que acrescentaria um parágrafo 9º ao art. 129Page 73do Código Penal, com a seguinte redação: ―Não constitui fato punível a ablação de órgãos e partes do corpo humano, quando considerada necessária em parecer unânime de Junta médica e precedida de consentimento expresso de paciente maior e capaz‖.

Contudo, a polêmica social, em especial no âmbito religioso, motivou o então Presidente, General João Batista Figueiredo, a vetar o referido projeto de lei. Outros projetos de lei, ainda não aprovados, dispõem sobre o tema. Por exemplo, o projeto de lei nº 70 de 1995 visa acrescentar parágrafo ao artigo 129 do código penal com a redação de que ―não constitui crime a intervenção cirúrgica realizada para fins de ablação de órgãos e partes do corpo humano quando, destinada a alterar o sexo de paciente maior e capaz, tenha ela sido efetuada a pedido deste e precedida de todos os exames necessários e de parecer unânime de junta médica", bem como acrescentar na lei 6.015 de 1973, a Lei de Registros Públicos, a hipótese adicional na mudança de prenome nos casos em que tenha havido intervenção cirúrgica para mudança de sexo.

A atuação do Poder Legislativo ainda não conseguiu apresentar resposta a esse fato social. Em sua busca pela cidadania plena, o transexual se depara com a falta de dispositivo legal que regulamente tanto a mudança cirúrgica de gênero, quanto a alteração no registro civil que adequaria sua situação jurídica à sua situação fática. Devido ao desacordo moral que permeia a sociedade brasileira, as maiorias não têm aprovado lei regulamentando o tema. O Direito, então, tem encontrado na jurisprudência, na construção do entendimento consolidado dos tribunais da república, a forma de lidar com tais conflitos. A...

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