A desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro

AutorGiovanni Comodaro Ferreira
CargoMestre em Direito pela UNESP
Páginas1-20

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1. Algumas notas preliminares

A desconsideração da personalidade jurídica se traduz na declaração de ineficácia da autonomia societária para certos efeitos, conservando-se a pessoa jurídica absolutamente apta a prosseguir em suas lícitas atividades.12 Trata-se de expediente nascido da jurisprudência alienígena, originando-se a partir de decisões emanadas das altas cortes da Inglaterra e Estados Unidos.

De um modo geral, a disregard doctrine - como se apresenta nos países anglo-saxônicos - pode ser definida como a

doutrina que assegura que a estrutura da sociedade (...) pode ser desconsiderada, impondo-se a responsabilidade pessoal, no caso de fraude ou outra injustiça, aos acionistas, administradores e diretores que agem em nome da sociedade3, sempre em casos esporádicos e nunca afetando a validade de seu ato constitutivo. Portanto, a doutrina do superamento (segundo nomenclatura também empregada) não se volta à invalidação da personalidade jurídica de uma entidade, mas à sua suspensão temporária para responsabilizar os infratores que fizeram dela instrumento de ilegalidade.

O mecanismo, como se apontou, surgiu nos domínios da Common Law e se deve, fundamentalmente, à tradição jurídica a que se filiam seus ordenamentos. Nesses países, a lei exerce papel secundário, entregando-se à jurisprudência e ao costume o primado entre as fontes do direito.

Pela própria lógica da subordinação, a hierarquia estabelecida entre as fontes jurídicas determina a necessária adequação do elemento inferior ao superior, de modo Page 2 que a eventual invalidação da fonte secundária pressupõe um desajuste desta em face da orientação da fonte principal. E isto se processa naturalmente, em atenção à exigência da necessária sujeição entre tais elementos.

A decisão judicial que criou o precedente da desconsideração representou a afirmação da jurisprudência como referencial supremo das fontes da Common Law, tendo em vista que não apenas revelou o potencial inovador e criador da atividade judicante, como importou na relativização de um preceito formal. Mas tal evento não é de causar espanto, pois simplesmente retratou a dinâmica específica da superação de uma fonte inferior por outra superior, que, no caso anglo-saxônico, induz ao triunfo da jurisprudência sobre a lei.

Estranho seria se a iniciativa pioneira de desprezar episodicamente a personalidade jurídica partisse de um magistrado de formação romano-germânica, num sistema que proclama a autonomia societária pela via legal, a que justamente se vê, tradicionalmente, subordinado o juiz. A ousadia, neste caso, seria bem mais expressiva, e talvez fosse sumariamente rechaçada pelas instâncias judiciárias superiores, hipótese em que teria produzido o mecanismo como um autêntico natimorto.

Com efeito, há de se dispensar especial atenção ao fato de essa nova concepção jurídica ter por berço países que não comungam conosco dos mesmos valores e traços jurídicos, mas apresentam uma cultura jurídica onde, antes de tudo, não há o primado da lei sobre as demais fontes do direito, encontrando-se ela sempre em posição subalterna em face da jurisprudência e do costume.

Isso explica porque causaram tanto alvoroço os primeiros gestos concretos de relativização da personalidade societária no judiciário brasileiro, e porque a doutrina tanto apregoou a necessidade de consagração normativa do expediente no ordenamento pátrio.

Percebe-se, portanto, que foi em sistemas mais flexíveis que floresceu a doutrina de penetração, nos quais sua aplicação não encontrou resistência de uma malha normativa difusa e rígida como é a nossa. Em nações como Inglaterra e Estados Unidos, a recepção de novas tendências jurídicas se faz mais facilmente, uma vez que elas não passam necessariamente pelo filtro de um órgão legislativo encarregado da produção dos comandos legais de um sistema. A decisão dos tribunais, nesses países, é o que introduz no direito nacional as novas regras, possibilidade que confere aos magistrados um poder de criar o direito, paralelo àquele tradicional que lhe permite aplicar a norma ao caso concreto, vale dizer, à jurisdição.

As realidades jurídicas, dessa maneira, são distintas, uma vez que nosso país integra o bloco dos sistemas em que, repita-se, a lei é a norma suprema. Daí porque, quando a notícia da desconsideração chegou à comunidade jurídica brasileira, passou-se Page 3 a proclamar que a implantação dessa nova teoria deveria respeitar nossa estrutura legal, integrando-a pelo mesmo processo que se prevê para a criação das demais regras.

Em face dessas circunstâncias, o advento da desconsideração fez a doutrina nacional articular-se no protesto por uma estipulação normativa do mecanismo. Essa movimentação, contudo, resultou em excessos, levando alguns autores a apontar determinadas normas como brechas do sistema por meio das quais estaria admitida a teoria entre nós. Assim é que instrumentos voltados a regulações específicas foram transmudados em preceitos consagradores do instituto, demonstrando que nem mesmo a boa parte de nossa doutrina tem importado a precisão técnica exigida à boa lei.

2. Diplomas supostamente consagradores do instituto

O texto legal apontado como pioneiro no tratamento da questão é o artigo 10 do Decreto nº 3078/19, que cuida das sociedades por cotas de responsabilidade limitada. O preceito discrimina a responsabilidade dos sócios pelo excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do contrato ou de lei. Entretanto, ele reporta, expressamente, à condição de responsáveis solidários dos componentes desta sociedade, e não a uma utilização indevida da autonomia da pessoa jurídica, como exige a doutrina do superamento. Sendo assim, forçoso é reconhecer que tal dispositivo não corresponde à primeira normatização da teoria no direito brasileiro.

Esse é o entendimento de Alexandre Couto Silva, consignado nos termos seguintes:

Na legislação sobre sociedades limitadas, o artigo 10 do Decreto nº 3078/19 não trata de uma hipótese de desconsideração, como quiseram alguns doutrinadores, mas apenas admite responsabilidade, perante terceiros, solidária e ilimitada dos sócios-gerentes ou dos que derem nome à firma por dívidas da sociedade (dívida alheia), pelo excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do contrato ou da lei.4

A Lei das Sociedades por Ações também é citada, por supostamente retratar situação ensejadora da relativização da autonomia societária. Roberto Papini sustenta esta proposição, ensinando que

a definição do acionista controlador, a atribuição de deveres e respectiva responsabilização por atos praticados com abuso e desvio de poder, constitui um avanço do direito societário brasileiro, porquanto representa a adoção da chamada teoria da...

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