Personalidade

AutorJosé Osmir Fiorelli/Marcos Julio Olivé Malhadas Junior/Maria Rosa Fiorelli
Páginas165-195

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Quando eu era jovem, parecia que a vida era tão maravilhosa, um milagre, bela, mágica.

E todos os pássaros nas árvores cantavam tão alegremente, felizes e saltitantes me observando. Mas então fui enviado para longe, para aprender como ser sensível, lógico, responsável, prático. E me mostraram um mundo onde eu podia ser tão dependente, clínico, intelectual, cínico.

Supertramp — “The logical song”

Comportamentos mal adaptados alimentam as fogueiras dos conflitos. Por isso, em muitas situações, compreender o comportamento dos clientes (suas causas e fatores que influenciam na evolução) é estratégico para o advogado, especialmente quando ele assume o papel de assessor, orientador ou mentor, ou em processos complexos, nos quais o contato com as partes vai muito além do estabelecido pela processualística.

Este capítulo tem por objetivo propiciar ao leitor conhecimentos básicos a respeito do comportamento humano, estabelecidos na forma de padrões estruturados que configuram o que se denomina “personalidade”. Conjugados com os conteúdos das teorias de Psicologia e os conceitos relacionados às funções mentais superiores, compõem um instrumental teórico consistente, por meio do qual o advogado terá condições efetivas de melhor desempenhar suas atividades no relacionamento individual ou em equipe.

6.1. Limitações ao estudo do comportamento

“O comportamento humano é, talvez, o objeto mais difícil dentre os que já foram alvo dos métodos da ciência...” (SKINNER).

Skinner (op. cit., p. 31) alerta que “o estudo distorce a coisa estudada”. Três questões merecem especial atenção quando se trata do estudo do comportamento humano:

a influência do observador: as pessoas modificam seus comportamentos, ainda que involuntariamente, ao se perceberem observadas; o cliente, conscientemente ou não, altera seu modo de agir pela simples presença do advogado;

— a capacidade do observador de perceber e discriminar o que possa ser relevante possui limitações fisiológicas e relacionadas com os seus conteúdos psíquicos; e

o grau de autoconhecimento do observador, indispensável para a compreensão dos mecanismos automáticos de defesa, esquemas rígidos de pensamento

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e pensamentos automáticos de sua própria pessoa, capazes de inserir perturbações em sua atividade, a ponto de afetar as estratégias de trabalho e a análise dos resultados.

Estas questões devem estar presentes quando se trata de compreender o comportamento das pessoas: colegas, clientes, adversários e, naturalmente, o próprio!

Se a presença do advogado exerce influências diversas sobre os comportamentos imediatos de clientes e testemunhas, isso não significa que elas se refletirão, na mesma proporção e da mesma forma, nas crenças, valores e princípios dessas pessoas e em seus comportamentos futuros. Essa influência apresenta duplo sentido: o advogado também é afetado pelos comportamentos daqueles com quem se relaciona, ainda que faça o possível para “manter-se neutro”; tal neutralidade, se possível e levada a um extremo, significaria perda de eficiência e eficácia e, portanto, não seria desejável; se inexistente, significaria tomar para si a causa do cliente e assumir seus dramas emocionais. O desafio encontra-se em determinar a adequada distância emocional, que lhe permita envolver-se, sem se deixar dominar e absorver pelo cliente, conforme já foi salientado anteriormente.

O advogado deve, pois, estar atento a estas questões e uma forma de fazê-lo é desenvolver a sistemática observação dos comportamentos, de modo crítico e desprovido de preconceitos, para compreender como as pessoas se manifestam. Com toda a certeza, comprovará que:

• ao se perceber observado, o cliente apresenta o comportamento de representar, inclusive para o profissional que o atende. Alguns fazem-se de vítima e hipervalorizam seus dramas e problemas; outros minimizam os acontecimentos para demonstrar o quanto se encontram acima daqueles que os ofendem ou provocam. Traições ganham um colorido que acentua danos e malefícios. Ofensas tornam-se hediondas e os efeitos sobre as vítimas, irreparáveis. Outros optam por não defender direitos assegurados. As características de personalidade dos envolvidos exercem notável efeito nas interpretações dos conflitos e nos comportamentos emitidos.

A teatralização é fato comum. Cultura e características do grupo social ao qual o indivíduo pertence contribuem para a forma como ela ocorre, em função das qualificações, cultura e expectativas dos envolvidos.

Esse fenômeno foi comprovado cientificamente, pela primeira vez, na famosa experiência de Hawthorne, em que dois grupos executaram a mesma tarefa, sendo um deles observado e o outro não; o grupo observado desempenhou com mais eficiência, embora as condições de qualificação e realização das atividades fossem idênticas.

• a percepção de detalhes dos comportamentos é mais eficaz à medida que experiências anteriores, aptidões e outros fatores que afetam os mecanismos de sensação e percepção permitam discriminar elementos significativos. Olhos e ouvidos devem ser treinados para que desenvolvam sensibilidade. A formação e experiência profissional do advogado, seus conhecimentos técnicos e de relacionamento interpessoal favorecem a qualidade das percepções.

Cleverson, auxiliar de pedreiro, negava, perante os amigos, ter agredido sua namorada. Para defendê-lo da acusação, procurou um advogado experiente,

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morador do mesmo bairro e conhecido por ajudar pessoas em dificuldade financeira. Na entrevista, o advogado tornou claro para Cleverson, após uma rápida conversa, que não acreditava na versão por ele apresentada; tinha certeza de que, de fato, a agressão havia acontecido. Afinal, Cleverson confessou. A experiência do advogado permitiu-lhe, pela análise da gesticulação e dos trejeitos faciais do cliente, suspeitar de que este não dizia a verdade.

• Os comportamentos acontecem em um esquema de referência de valores. O advogado — destaque-se a importância do autoconhecimento — deverá cuidar para que esse esquema reflita os valores do público-alvo (e não os seus), quando se tratar do momento de compreender as ações das pessoas. O advogado que carrega consigo uma carga de preconceitos (contra empregados ou patrões, contra determinada categoria profissional por exemplo) terá sua percepção distorcida e não imprimirá objetividade ao seu trabalho quando observar comportamentos desse público. Aquele profissional que enfrentou uma situação familiar complexa — por exemplo, um divórcio litigioso —, que lhe imprimiu ferimentos emocionais ainda não cicatrizados, poderá deixar-se contaminar por tais elementos em um processo que replique sua própria experiência. Eliminar preconceitos e pensamentos automáticos, flexibilizar os esquemas de pensamento e compreender os próprios mecanismos inconscientes de defesa é uma salutar e obrigatória tarefa para todos aqueles que se relacionam com pessoas.

• Os comportamentos modificam-se com o tempo, acompanhando transformações cognitivas e comportamentais. Isso, muitas vezes, conduz a pessoa despreparada a autênticas surpresas, as quais justificam frases do tipo “jamais poderia esperar tal comportamento de fulano”. De fato, muitos comportamentos são contingenciais e devem ser avaliados à luz de diversas teorias aqui apresentadas. O caso dos senhores Davi e Salomão, apresentado no item 6.3.4, é emblemático.

Uma das questões sempre presentes no estudo e na observação dos comportamentos, e muitas vezes lembrada para justificar comportamentos adotados por pessoas em situações críticas, é o papel representado pelo instinto.

Instinto é, por definição, o “esquema de comportamento herdado, próprio de uma espécie animal, que pouco varia de um indivíduo para outro, que se desenrola segundo uma sequência temporal pouco susceptível de alterações e que parece corresponder a uma finalidade” (LAPLANCHE; PONTALIS, op. cit., p. 241).

Sob a ótica da Psicologia, o comportamento por instinto é praticamente inexistente. Para Lundin (op. cit., p. 61), os reflexos (movimentos automáticos diante de uma estimulação, como o reflexo patelar — o popular “choque” de uma pequena pancada no joelho, fazendo a perna “saltar”) constituem a limitada quantidade desse tipo de comportamento, não aprendido, do ser humano. O engatinhar seria outro exemplo: a criança o desenvolve, ainda que sem observar os adultos ou outras crianças procedendo dessa maneira.

Ocorre que o processo de civilização afasta o indivíduo do “comportamento por instinto”, característico dos animais, substituindo-o por um poderoso verniz, o “comportamento civilizado”. É a civilização que desperta nos indivíduos motivação e disciplina para permanecer, por longos períodos, em atividade ou trabalho prazerosos ou

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penosos, mesmo sem satisfazer necessidades essenciais que o instinto levaria a realizar. Conteúdos emocionais alteram o funcionamento do organismo, favorecendo a execução da atividade eleita como prioritária. Alguns exemplos bastante conhecidos:

— cirurgiões realizam longas intervenções, praticamente sem qualquer interrupção, com total absorção na tarefa;

— pessoas modificam os horários de sono e vigília, sem relação com o ciclo dia/ noite (principal marcador do comportamento animal), mesmo comprometendo a saúde;

— advogados enclausuram-se em seus escritórios, degustando o sabor do trabalho ou submetendo-se às exigências da atividade, deixando em segundo plano outros interesses pessoais;

— estudantes submetem-se a extensos períodos de sono escasso, preparando-se para vestibulares e/ou concursos;

— alpinistas resignam-se a permanecer horas intermináveis pendurados em rochas, enfrentando os...

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