Penhora de salário e os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade: breve análise da jurisprudência brasileira à luz de aportes críticos pós-positivistas

AutorNey Maranhão
CargoJuiz do Trabalho (TRT da 8a Região - PA/AP)
Páginas97-110

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1. Introdução

O propósito desse estudo é descortinar alguns exemplos da aplicação dos postulados da proporcionalidade e da razoabilidade perante a jurisprudência pátria (civil e trabalhista), mais precisamente no que diz com a flexibilização da regra do art. 649, IV, do CPC.

Busca-se analisar a questão à luz de alguns aportes críticos de fundo pós-positivista.

2. O fenómeno pós-positivista: anotações básicas

O direito está em crise. Como acentua Luís Roberto Barroso, o direito positivista vive uma grave crise existencial, na medida em que não consegue entregar com eficiência os dois produtos que fizeram sua reputação ao longo dos séculos, mencionando o renomado autor que "a injustiça passeia pelas ruas com passos firmes e a insegurança é a característica da nossa era"1. O pós-positivismo, nesse compasso, representa exatamente o anseio por um novo fôlego, a busca por uma nova perspectiva...

Rememore-se que a ascensão do jusnatura-lismo está associada à necessidade de ruptura com o Estado absolutista, enquanto que sua decadência está vinculada ao movimento de codificação do direito, ocorrida lá pelos idos do século XVIII. Por outro lado, a ascensão do juspositivismo está jungida à crença exacerbada no poder do conhecimento científico (frio e calculista), ao passo que sua decadência está ligada à derrota do nazifascismo, no século XX. É exatamente nesse colapso de pensamentos, nessa crise de paradigmas, que o pós-positivismo, em um valioso ímpeto de superação científica, exsurgiu. Realmente, em já clássica construção textual, acentua, com propriedade, Barroso:

"O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica e a teoria dos direitos fundamentais. (...) O Direito, a partir da segunda metade do século XX, já não cabia mais no positivismo jurídico. A aproximação quase absoluta entre Direito e norma e sua rígida separação da ética não correspondiam ao estágio do processo civili-zatório e às ambições dos que patrocinavam a causa da humanidade. Por outro lado, o discurso científico impregnara o Direito. Seus operadores não desejavam o retorno puro e simples ao jusnaturalismo, aos fundamentos vagos, abstratos ou metafísicos de uma razão subjetiva. Nesse contexto, o pós-positivismo não surge com o ímpeto da desconstrução, mas como uma superação do conhecimento convencional. Ele inicia sua trajetória guardando deferência relativa ao ordenamento positivo, mas nele reintro-duzindo as ideias de justiça e legitimidade. O constitucionalismo moderno promove, assim, uma volta aos valores, uma reapro-ximação entre ética e Direito."2

Como se pode perceber, a teoria normativa dos princípios é assunto estreitamente ligado ao pós-positivismo, que os guindou ao relevante status de normas jurídicas e os colocou no privilegiado patamar constitucional3.

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Com isso, os princípios enfim se libertaram daquela velha ideia de que detinham apenas valia ética, passando a ostentar mesmo plena vinculatividade jurídica.

A visão pós-positivista também acarreta mudanças na área da interpretação constitucional. Nesse particular, leciona Barroso:

"A interpretação jurídica tradicional desenvolveu-se sobre duas grandes premissas: (i) quanto ao papel da norma, cabe a ela oferecer, no seu relato abstrato, a solução para os problemas jurídicos; (ii) quanto ao papel do juiz, cabe a ele identificar, no ordenamento jurídico, a norma aplicável ao problema a ser resolvido, revelando a solução nela contida. Vale dizer: a resposta para os problemas está integralmente no sistema jurídico e o intérprete desempenha uma função técnica de conhecimento, de formulação de juízos de fato. No modelo convencional, as normas são percebidas como regras, enunciados descritivos de condutas a serem seguidas, aplicáveis mediante sub-sunção. Com o avanço do direito constitucional, as premissas ideológicas sobre as quais se erigiu o sistema de interpretação tradicional deixaram de ser integralmente satisfatórias. Assim: (i) quanto ao papel da norma, verificou-se que a solução dos problemas jurídicos nem sempre se encontra no relato abstrato do texto normativo. Muitas vezes só é possível produzir a resposta constitucionalmente adequada à luz do problema, dos fatos relevantes, analisados topicamente; (ii) quanto ao papel do juiz, já não lhe caberá apenas uma função de conhecimento, voltado para revelar a solução contida no enunciado normativo. O intérprete torna-se coparticipante do processo de criação do direito, completando o trabalho do legislador, ao fazer valorações de sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre soluções possíveis."4

Eis o cabedal teórico que servirá de pano de fundo para as singelas reflexões que se pretende realizar neste estudo.

3. A razoabilidade e a proporcionalidade como postulados indissociáveis da atividade judicante

No Brasil, mesmo à época do auge positivista - onde o direito confundia-se com a lei -, ao intérprete recaía o encargo de enxergar bem mais que a simples letra do enunciado legal. Sempre se fomentou, por expressa disposição legislativa, uma impostação de espírito que garimpasse a teleologia da norma e tocasse seus objetivos mais caros. Nesse sentido, o constante do art. 5° da hoje Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Nesse afã, tem sido cada vez mais comum, no âmbito da jurisprudência brasileira, o manuseio de sadios parâmetros de proporcionalidade e razoabilidade na interpretação/ aplicação das normas. Registre-se, a propósito,

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que razoabilidade e proporcionalidade são tomados aqui como postulados, ou seja, enquanto normas metódicas dirigidas ao intérprete e ao aplicador do Direito para a escorreita aplicação de outras normas (regras e princípios)5, a nosso ver funcionando, em essência, como verdadeiros parâmetros de contenção do arbítrio e realização do justo perante cada caso concreto.

A Constituição Federal de 1988 não se reportou ao princípio da proporcionalidade. Entretanto, esse fato em nenhum momento constitui óbice para seu manuseio. Como bem acentua Willis Santiago Guerra Filho, esse vetor de proporcionalidade é mesmo algo intrínseco à própria essência do Estado Democrático de Direito. Demais disso, dispõe, expressamente, o § 2-, do art. 5-, do texto constitucional pátrio, que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados". Para esse autor, aliás, o princípio da proporcionalidade tem importância es-pecialíssima, a ponto de ser por ele encarado como "princípio dos princípios, verdadeiro principium ordenador do direito"6. Segundo Virgílio Afonso da Silva, o objetivo da aplicação do vetor da proporcionalidade "é fazer com que nenhuma restrição a direitos fundamentais tome dimensões desproporcionais"7

Pontue-se, noutro quadrante, que julgar por equidade difere de julgar com equidade.

No primeiro caso, visualiza-se o culto liberal de premência da lei em busca de segurança jurídica, proibindo ao julgador, arbitrariamente, afastar-se da lei para fazer valer seu sentimento pessoal de justiça. Sucede, porém, que no paradigma de um Estado Democrático de Direito e à luz da força normativa da Constituição Federal, o agir equitativo é algo mesmo ínsito ao ato de julgar8. Impõe-se, dessa forma, que toda interpretação e aplicação da lei se dê também - e sempre - com alguma dose de equidade, no sentido de que se transcenda "a justiça abstrata e genérica da lei para alcançar--se a justiça concreta e individualizada do caso"9, afinal, "o juiz não é uma máquina silogística, nem o processo, como fenómeno cultural, presta-se a soluções de matemática exata. Impõe-se rejeitar a tese da mecanicista aplicação do direito"10

Humberto Ávila enxerga no postulado da razoabilidade três acepções: como equidade, como congruência e como equivalência. Fácil inferir que a linha intelectiva supra é consentânea com a razoabilidade enquanto vetor de equidade11. E é precisamente nessa toada que esse insigne jurista expõe a distinção entre incidência e aplicação da norma. Eis sua percuciente lição, in verbis:

"Nem toda norma incidente é aplicável. É preciso diferenciar a aplicabilidade de uma regra da satisfação das condições previstas em sua hipótese. Uma regra não é aplicável somente porque as condições previstas em sua hipótese são satisfeitas. Uma regra é aplicável a um caso se, e somente se, suas

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condições são satisfeitas e sua aplicação não é excluída pela razão motivadora da própria regra ou pela existência de um princípio que institua uma razão contrária. Nessas hipóteses as condições de aplicação da regra são satisfeitas, mas a regra, mesmo assim, não é aplicada."12

Ou seja, a inconstitucionalidade não recai sobre o objeto da interpretação (o enunciado legal), mas sobre o produto dela (a norma produzida para o caso concreto)13. Em termos mais simplórios, a inconstitucionalidade é uma mácula que pode recair não apenas sobre o dispositivo normativo, como sói acontecer, mas também sobre o efeito concreto de sua regular aplicação, sendo essa uma realidade jurídica que o jurista não pode desprezar14

Busca-se, com isso, pois, uma concepção de justiça que suplante os limites da legalidade estrita. Que, enfim, saia da acanhada dimensão da lex e adentre os portais do fértil espectro do jus.

4. A penhora de salário no âmbito da jurisprudência brasileira (civil e trabalhista)

A temática da possibilidade de se fazer recair...

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