Da possibilidade de penhora do bem de família do fiador – críticas ao projeto de lei 6.413 de 2009

Autor1.Caroline Meireles Roque - 2.André Luiz Junqueira
Cargo1.Membro da Associação Brasileira de Advogados do Mercado Imobiliário (ABAMI) - 2.Membro da ABAMI
Páginas53-57

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1. Introdução

Neste breve texto, abordar-se-á a importância da possibilidade de se penhorar o único bem de família do fiador em contrato de locação de imóveis, em prol do equilíbrio social, econômico e jurídico do mercado imobiliário, assim como tecer comentários sobre o inoportuno Projeto de Lei 6.413/09 da Câmara de Deputados, que visa derrubar essa regra.

2. A fiança como garantia do contrato de locação

O contrato de fiança é regulado pelo Código Civil brasileiro (Lei Federal 10.406/02), cujo art. 818 expressa: “Pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra.” A fiança é uma das quatro garantias que podem ser exigidas pelo locador em um contrato de locação de imóvel urbano e, apesar de ter sua base primária no Código Civil, quando a fiança é prestada em benefício de um locatário de imóvel, prevalecem as disposições especiais da Lei do Inquilinato (Lei Federal 8.245/91).

De acordo com as normas legais, quando uma pessoa física ou jurídica assume a qualidade de fiadora, implica dizer que a partir daquele momento assumiu a responsabilidade de assegurar, com o seu patrimônio, o cumprimento do contrato de locação. Nas palavras de Orlando Gomes (Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 548 in DINIZ, Maria Helena. Lei de locações de imóveis

urbanos comentada. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 159): “Haverá contrato de fiança, sempre que alguém assumir, por escrito, para com o locador, a obrigação de pagar o aluguel e demais encargos locativos, se o inquilino não o fizer.”

Pode-se afirmar que são características da fiança: (1) a pessoalidade, pois é um sujeito de direitos e obrigações que se compromete com outrem a garantir o contrato; (2) forma escrita, exigida pelo art. 819 do Código Civil; e (3) acessoriedade, ou seja, o contrato de fiança só existe em função do contrato principal, que é o contrato de locação, dessa forma, quando o contrato de locação se extingue, automaticamente também finda o contrato de fiança.

3. A regra de impenhorabilidade do bem de família e a exceção da fiança locatícia

O legislador infraconstitucional, em harmonia com a Constituição Federal de 1988 (CF/88) e com seu princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88), através da Lei Federal 8.009 de 1990, protegeu o único imóvel destinado a moradia da entidade familiar, com algumas ressalvas. E, assim como em outros países, no Brasil, o imóvel destinado à habitação da família passou a receber proteção especial, impossibilitando a constrição judicial do imóvel residencial próprio do casal ou da família, incluindo os móveis que guarnecem a casa, desde que quitados. Em outras palavras, pela regra do art. 1º da Lei 8.009/90, ao propor uma ação em face de uma pessoa, seu imóvel residencial, seja do casal ou família, não estará sujeito à penhora se houver condenação judicial.

Para melhor esclarecimento, colacionam-se os artigos 1º e 5º da lei mencionada, que rezam:

“Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei. Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados”. (...)

“Art. 5º Para os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei, considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente.

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Parágrafo único. Na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis e na forma do art. 70 do Código Civil.” (grifam-se)

Todavia, embora essa seja a regra, como exceção, estipulou-se que o bem de família do fiador pode ser penhorado em razão de obrigação decorrente de contrato de locação, conforme o art. 3º, VII, da Lei 8.009/90 (dispositivo que foi adicionado em 1991 pelo art. 82 da Lei do Inquilinato).

Logo, como forma de resguardar a fiança como garantia locatícia (art. 37, II, da Lei 8.245/91), alterou-se o artigo 3º da Lei 8.009/90, incluindo um novo inciso, VII, que é reproduzido abaixo:

“Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: (...)

VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.”

Sylvio Capanema de Souza comenta o dispositivo acima exposto (A lei do inquilinato comentada. 5. ed. Rio de Janeiro: GZ, 2009, p. 390):

“A nova exceção, acrescida ao artigo 3º da Lei nº 8.009, se impunha, no interesse do mercado, pois estava se tornando quase impossível o oferecimento da garantia da fiança, já que raramente o candidato à locação conseguia um fiador que tivesse, em seu patrimônio, mais de um imóvel residencial.”

Porém, quando a lei tornou o bem de família do fiador penhorável, surgiram várias ações perante o Poder Judiciário a fim de derrubar o dispositivo legal, principalmente, após o ano 2000, sob o fundamento de ofensa ao direito à moradia, direito social incluso no art. 6º da Constituição brasileira pela Emenda 26 de 2000. Após um período de insegurança jurídica, devido às divergências de entendimentos nos tribunais, a jurisprudência posicionou-se favorável à possibilidade de constrição judicial do imóvel do fiador que se fizesse necessária para garantir o contrato de locação, ainda que este fosse seu único imóvel, pois entendeu-se que o dispositivo também visava, mesmo que indiretamente, viabilizar o direito à moradia, especialmente para as pessoas que não possuem condições para adquirir definitivamente a propriedade imóvel, como fica claro no trecho do julgamento do Supremo Tribunal Federal, reproduzido abaixo:

“Porquanto, atendendo à própria ratio legis da exceção prevista no art. 3°, VII, da Lei 8.009/90, facilita e estimula o acesso à habitação arrendada, constituindo reforço das garantias contratuais dos locadores, e afastando, por conseguinte, a necessidade de garantias mais onerosas, tais como a fiança bancária (RE-AgR 464586, relator ministro Carlos Britto, julgamento em 06/06/ 2006, DJ de 24-11-2006).”

Embora o posicionamento acima tenha sido objeto de divergências, atualmente o STF consolidou o entendimento de que a exceção prevista no art. 3°, VII, da Lei 8.009/90, permitindo a execução do bem de família do fiador em contrato de locação, é inteiramente constitucional.

Sobre a constitucionalidade do dispositivo, Sylvio Capanema de Souza...

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