Patrimonio Cultural: O Processo de Amplição de Sua Concepção e Suas Repercurssões

AutorCarla Gabrieli Galvão de Souza
CargoBacharela em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Especialista em Filosofia Contemporânea pela Faculdade São Bento da Bahia e pós-graduanda em Direito e Processo do Trabalho.
Introdução

Cumpre salientar, inicialmente que o presente artigo é resultado da monografia de final de curso apresentada em dezembro de 2005 na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, a qual foi fruto de duas experiências acadêmicas: um estágio realizado junto à 7ª Superintendência Regional do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –, no ano de 2004, e a participação no Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão sobre o Patrimônio Cultural Imaterial do Centro Histórico de Salvador-BA, formado na Faculdade de Direito da UFBA, que teve o intuito de discutir a problemática 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico de Salvador, conhecido como Pelourinho.

O patrimônio cultural sempre foi valorizado sob seu aspecto material, a exemplo dos monumentos, igrejas, centros históricos, obras, objetos, enfim, bens tangíveis que apresentam características históricas, artísticas, paisagísticas, arqueológicas e/ou arquitetônicas. O patrimônio cultural em sua dimensão imaterial, representado pelas manifestações culturais, pelos usos e costumes de um povo, pela comida, pelos modos de criar, de fazer e de viver, etc., foi por muito tempo esquecido, não sendo objeto da tutela estatal.

A Constituição Federal de 1988 inovou ao prever a proteção do patrimônio cultural em suas diversas dimensões, inclusive a imaterial, de modo que fossem utilizados instrumentos como o inventário, o registro, a vigilância, o tombamento e a desapropriação, dentre outros. A Carta Maior trouxe uma visão ampliada do patrimônio cultural, e com ela a necessidade de entendê-lo a partir dos processos culturais que regem as relações sociais humanas e que são constantemente recriados, baseados nas idéias de dinamicidade e fluidez, iniciando um novo processo no tratamento do patrimônio cultural.

Este trabalho propõe-se a analisar a noção tradicional de patrimônio cultural, seu surgimento no seio do mundo ocidental e as características decorrentes do contexto histórico em que se desenvolveu. A partir dessa concepção, discutir-se-á a limitação que a envolve e que acabou por gerar graves conseqüências às políticas de preservação do patrimônio cultural até os dias de hoje. Num segundo momento, buscar-se-á entender como se deu o processo de ampliação da noção tradicional de patrimônio cultural, a partir da influência de um novo conceito de cultura, fundado em estudos antropológicos, e das dimensões diversas em que o patrimônio cultural se manifesta, para que se possa entender a sua acepção jurídica. Nesse sentido, serão apresentadas as inovações da Constituição brasileira de 1988 e as conseqüências dessa ampliação, bem como suas variadas repercussões na prática diversa da vida cotidiana. Por fim, pretende-se refletir acerca de alguns aspectos envolvendo a temática, ressaltando a necessidade de conexão entre as dimensões material e imaterial do patrimônio cultural para a efetivação de uma preservação eficaz.

1. A noção tradicional de patrimônio cultural

O termo patrimônio, tradicionalmente, possui conotação de herança paterna, característica da transmissão da carga hereditária de um grupo social a suas gerações futuras. Os bens, a terra, os animais, os objetos de uso comum são passados de pai para filho, de grupo para grupo ao longo dos anos, de forma que não possam ser perdidos, extintos ou destruídos. Logo, para a tradição, patrimônio decorre da apropriação privada dos bens.

Isto por si só não esgota, porém, todas as dimensões que o conceito de patrimônio evoca. Ao longo da história, a concepção de patrimônio adquiriu novos elementos e vinculou-se de forma interessante à idéia de nação e cultura. Tal conexão ocorreu a partir do momento em que se passou a trabalhar com a noção de herança nacional, com a formação de grupos mais organizados social e politicamente e, efetivamente, com o surgimento dos Estados-nações. A transmissão dos produtos nacionais às gerações futuras era (e é) essencial à idéia de uma nação, vez que a continuidade de todo grupo social exigia (e exige) a passagem de bens e práticas (culturais) consideradas herança daquele grupo (CANANI, s/d, p. 03.) Buscava-se, pois, a partir de uma identificação tradicional, proveniente da atribuição de valores a determinados aspectos culturais, o nascimento de um sentimento de nacionalismo capaz de legitimar a formação dos Estados, de modo que as pessoas se sentissem unidas em face de um ideal comum: pertencer a uma nação. E isso deu ao Estado a legitimidade necessária à sua estruturação e organização como poder superior, gestor dos interesses e bens da nação.

Ademais, houve outro fator fundamental: a destruição de monumentos e objetos de arte antigos fez com que o Estado se preocupasse com a preservação de bens tidos como históricos e artísticos que contavam a história nacional.

Entende Maria Fonseca (1997, p. 9-60) que a noção de patrimônio cultural cumpriu, à época, algumas funções simbólicas: reforçar a idéia de cidadania, visto que os bens tradicionais são tratados como nacionais, de interesse da população e sujeitos à gestão estatal; objetivar e tornar visível a nova nação a partir da identificação de bens representativos; gerar provas materiais das versões oficiais da história nacional, por meio dos bens patrimoniais documentados; e educar novos cidadãos através da conservação desses bens.

A idéia de patrimônio cultural pressupõe a existência de um valor, a ele atribuído como justificativa da sua importância. Cria-se um universo simbólico característico aos patrimônios culturais, onde o valor nacional é o seu cerne (FONSECA, M., 1997, p. 29-31). Segundo Gonçalves (1990 apud FONSECA, M., 1997, p. 31), “esses bens viriam objetivar, conferir realidade e também legitimar essa comunidade imaginada”. A comunidade imaginada é a idéia de nação pregada pela sociedade ocidental do século XVIII, na qual as pessoas se identificam através dos bens culturais.

Apesar de os estudos reportarem ao século XVIII, essa noção possui caráter milenar e já existia em sociedades tribais como elemento fundamental à vida social (GONÇALVES, 2003, p. 22). Na Idade Média, por exemplo, a aristocracia preocupava-se com a transmissão hereditária de bens e construções; a Igreja tratava de resguardar os objetos que apresentavam caráter religioso, que fossem eivados de valores cristãos. No Renascimento, surgiu a devoção ao belo, antigo, rico e os monumentos eram tratados como relíquias sagradas (FONSECA, M. 1997, p. 53-54). Contudo, a modernidade ocidental, valendo-se dessa categoria preexistente, estabeleceu contornos semânticos específicos que formaram a idéia abordada.

Destarte, as bases valorativas nas quais se fundamenta a noção de patrimônio cultural provêm da concepção material de valorização da cultura do mundo ocidental. Por outro lado, no mundo oriental, os objetos concretos não eram (e não são) enxergados como únicos e essenciais à construção cultural, não se configurando como principais depositários da tradição cultural (SANT’ANNA, 2003, p. 48). Procurava-se (e procura-se) entender o patrimônio cultural essencialmente como o processo de conhecimento e interação sociais, comuns às pessoas do grupo social, enxergando os aspectos materiais como conseqüências dessa construção cultural objeto de valorização e preservação. Sob o olhar do mundo ocidental, inclusive, a tradição é marca de reconhecimento dos grupos orientais.

Importante ressaltar que a terminologia utilizada pelos ocidentais sempre foi a de “patrimônio histórico e artístico”, reflexo dos principais valores em que se fundava esse conceito, visto que tais dimensões são tidas como eixo para a legitimação da idéia de nação. Além desses aspectos, nitidamente materialistas, a construção da noção de patrimônio cultural fundou-se em bases culturais eurocêntricas, típicas de manifestações eruditas e consideradas civilizadas. As culturas não ocidentais, não européias e não civilizadas foram “esquecidas” pelo conceito de patrimônio cultural, vez que não eram consideradas merecedoras de tutela.

2. A ampliação do conceito de patrimônio cultural

A noção tradicional de patrimônio cultural, entretanto, não figurou estanque até os dias de hoje. Ao longo da história, ela adquiriu novas acepções, vivenciou a transformação de valores simbólicos essenciais à categoria de pensamento, e a incorporação de outras dimensões, além da histórica e artística.

Fruto de processos culturais, patrimônio cultural não é imutável, já que a produção humana é reflexo das relações das pessoas com o meio ambiente particular que as envolve, assim como da interação entre elas próprias. Relações e interações são processos dinâmicos, transformáveis e fundados na diversidade. Nesse sentido, não há patrimônio único, ou patrimônio eterno, ou mesmo formado de requisitos pré-definidos, e que possui características determinadas. Falar em processo é falar em construção, em criação, interação, relação, conceitos esses extremamente conflituosos.

A modernidade demorou, mas acabou por admitir que o patrimônio cultural de um grupo social é bastante diverso e sofre mudanças constantemente. Sua amplitude evidencia-se quando se entende que ele compreende os processos da vida humana. São as manifestações do ser humano em suas projeções de vida cotidiana: criações musicais coletivas, objetos de uma época que se tornaram típicos, edificações arquitetônicas...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT