Questões atuais sobre patentes de invenção: vendo o noticiário e entendendo a notícia

AutorParanaguá, Pedro
Páginas113-139

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Patentes farmacêuticas

A indústria farmacêutica figura como exemplo claro de indústria intensiva em conhecimento (science-based), onde a inovação é largamente determinada por avanços conjuntos das ciências básicas e aplicadas, associados a progressos complementares nas tecnologias de pesquisa. Dessa forma, a entrada e manutenção no mercado de empresas nesse segmento dependem em grande parte da inovação tecnológica, seja mediante novos produtos ou processos, seja pelo incremento daqueles já existentes.

Essas características encontram acolhimento no sistema atual de proteção industrial. Na seara farmacêutica, os depósitos patentários recorrentes de “novos” produtos ou processos visam inibir a concorrência e criar ilhas de monopólio. Não por acaso, as empresas farmacêuticas influenciaram decisivamente o deslocamento das regras de propriedade industrial da Ompi para a OMC, em 1994.91Como vimos, o Brasil alterou sua legislação de propriedade industrial em 1996, ajustando-se às novas regras da OMC. A nova

91Adede, 2003.

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lei ampliou o escopo das matérias patenteáveis, estabelecendo a possibilidade de proteção de todos os campos tecnológicos, alterando a proibição da lei anterior (Lei nº 5.772/71) quanto, por exemplo, a substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos, de qualquer espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou modificação.

A garantia da saúde no Brasil e o acesso a antirretrovirais (ARVs)

A Constituição Federal de 1988, ao afirmar que “saúde é direito de todo cidadão e dever do Estado”, forneceu as bases para a construção do Sistema Único de Saúde (SUS) por meio das leis no 8.080/90 e nº 8.142/90. A partir de então, apresentou-se o desafio de desenvolver um sistema público de saúde obedecendo a princípios fundamentais, como a universalidade do acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência, a integralidade de assistência, a igualdade da assistência à saúde — sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie —, a participação da comunidade, a descentralização político-administrativa, entre outros.

Entre os campos de atuação do SUS está a assistência terapêutica integral, incluindo a farmacêutica (art. 6º da Lei nº 8.080/
90). Esta última, considerando sua amplitude e complexidade, também se transformou em compromisso político de longo prazo por meio da Portaria nº 3.916/96 — a Política Nacional de Medicamentos —, materializando diretrizes e prioridades para a garantia do acesso a medicamentos essenciais e de qualidade.

No âmbito da epidemia de HIV/Aids no Brasil, a Lei no
9.313/9692(Lei de Acesso Universal) fortaleceu o arcabouço legal

92“Art. 1º — Os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de Aids (síndrome da imunodeficiência adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento.”

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já existente para a garantia do acesso a ARVs (medicamentos para o tratamento do HIV e da Aids) e outros medicamentos para o tratamento da infecção. A aprovação da referida lei foi determinante para a melhor estruturação do Programa Nacional de Aids. A lei ainda impulsionou os gestores do SUS, nas três esferas, a “formularem e implementarem um sistema logístico para aquisição e distribuição de medicamentos, assim como a estruturarem uma rede nacional de serviços de saúde para fornecer, de forma coordenada, serviços de assistência médica, apoio e diagnóstico laboratorial”.

As conseqüências da Lei de Acesso Universal podem ser ilustradas em números: entre 1997 e 2004, houve uma redução da mortalidade em 40% e da morbidade em 70%; uma redução das internações hospitalares em 80% e do tempo médio de internação hospitalar, gerando uma economia de gastos com internações da ordem de US$ 2,3 bilhões e como contrapartida um gasto de US$ 2 bilhões em ARVs no mesmo período. No entanto, a manutenção da distribuição universal de ARVs encontra-se ameaçada pela sustentabilidade financeira do programa.

Atualmente o Ministério da Saúde fornece 17 medicamentos ARVs (Abacavir, Atazanavir, Amprenavir, Delavirdina, Didanosina, Efavirenz, Estavudina, Indinavir, Lamivudina, Lopinavir/Ritonavir, Nelfinavir, Nevirapina, Ritonavir, Saquinavir, Tenofovir, Zalcitabina e Zidovudina), sendo oito deles produzidos por laboratórios farmacêuticos nacionais. Os medicamentos produzidos localmente não estão sob proteção patentária no Brasil, e esse fato permitiu a diminuição substancial dos valores das terapias, assim ampliando o acesso. No entanto, essa realidade foi alterada de forma indelével com o reconhecimento de patentes farmacêuticas no país.

O marco legal que estabelece a obrigatoriedade do fornecimento de medicamentos pelo Estado não significa a garantia de

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sua sustentabilidade, sobretudo quando consideramos enfermidades que consomem medicamentos patenteados, como é o caso do HIV/Aids. Ao longo dos últimos 10 anos, diversos desafios tiveram que ser enfrentados com a paralela aprovação da nova lei de patentes. Inicialmente, a redução de preços dos tratamentos deveu-se em grande parte à produção local e à concorrência internacional pela indústria de medicamentos genéricos. O cenário nacional de produção encontra peculiaridades, como a existência de 18 laboratórios públicos com forte vocação para o atendimento das demandas públicas. No cenário internacional, o retardamento do ajuste das leis internas de países produtores de genéricos, como a Índia, promoveu a concorrência e ampliou a possibilidade de acesso a medicamentos com preços mais acessíveis.

Num segundo momento, o Ministério da Saúde inaugurou as negociações com os laboratórios farmacêuticos transnacionais, detentores das patentes dos ARVs importados. Essa estratégia teve início em 2001, envolvendo os laboratórios Merck, Roche e Abbott. Nessa ocasião, houve redução de preços e a assinatura de um contrato de transferência de tecnologia (licença voluntária) para a produção do medicamento patenteado pela Merck. Em 2003, nova rodada de negociações teve início, e foi criado um grupo de negociação para aquisição e produção de ARV. Dessa vez, nem todos os objetivos foram alcançados, já que não foi possível um contrato de transferência de tecnologia. Por fim, em 2005, a negociação com a empresa Abbott culminou com a assinatura de um contrato com cláusulas restritivas.

Todas as negociações foram entabuladas sob ameaça de emissão de licenças compulsórias dos medicamentos. Porém, o Brasil não licenciou compulsoriamente medicamentos para HIV ou para qualquer outra patologia desde a implementação da nova LPI até maio de 2007. A emissão da primeira licença compulsória para medicamentos no Brasil será abordada a seguir.

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A licença compulsória do medicamento Efavirenz no Brasil

No dia 4 de maio de 2007, o governo brasileiro emitiu a licencia compulsória do medicamento Efavirenz, cuja patente pertence ao laboratório Merck Sharp & Dohme. De acordo com o Programa de DST/Aids do Ministério da Saúde, o antirretroviral Efavirenz é o medicamento importado mais utilizado no tratamento da Aids. Atualmente, 38% das pessoas vivendo com HIV/ Aids no Brasil utilizam o remédio nos seus esquemas terapêuticos. Estima-se que, até o final de 2007, 75 mil das 200 mil pessoas farão uso do Efavirenz.

Ainda segundo aquele programa, “com os valores praticados pelo laboratório para o país, o custo por paciente/ano equivale a US$ 580, o que representaria um orçamento anual de US$ 42,9 milhões para 2007. Os preços do produto genérico variam de US$ 163,22 a US$ 166,36 por paciente/ano. A partir desses valores, com o licenciamento compulsório, a redução de gastos em 2007 será em torno de US$ 30 milhões. A estimativa de economia até 2012, data em que expira a patente Efavirenz, é de US$ 236,8 milhões”.

Em nota conjunta anunciando o início do licenciamento compulsório, os ministérios da Saúde e das Relações Exteriores afirmaram que este seria feito “com vistas a assegurar a viabilidade do Programa Nacional DST-Aids” e em conformidade com a normativa nacional e internacional aplicável.

Pode-se dizer que vários fatores influenciaram a decisão do Executivo de emitir a licença compulsória do Efavirenz: a inflexibilidade do laboratório em rever seus preços para o mercado brasileiro; o desgaste da licença compulsória como instrumento de pressão (fato que restou evidente ao longo das respectivas negociações nos anos anteriores); e a pressão da sociedade civil

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brasileira, sobretudo de grupos ligados à saúde e aos direitos humanos.93O Efavirenz é um medicamento patenteado no Brasil através do mecanismo pipeline, apesar de o primeiro depósito ter sido feito em outros países em 1992. Outros fatores foram apontados por setores da sociedade civil como responsáveis pela decisão do Executivo:

a própria empresa vende o mesmo medicamento a preços muito inferiores em países de igual nível de desenvolvimento e com menor número de pessoas em tratamento (mas com um percentual de soropositivos acima de 1%, o que não é o caso do Brasil);

há versões genéricas muito mais baratas — de até US$ 0,45 por comprimido, ou custo anual de US$ 164,25 por paciente — produzidas por empresas indianas (Cipla, Ranbaxy e Aurobindo). A Merck não apresentou uma proposta aceitável para o governo brasileiro, desconsiderando o tamanho da demanda no país, crescente a cada ano, o compromisso com o acesso universal e ainda o fato de que o atual protocolo de tratamento inclui o...

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