Participação, consensualidade, efetividade: no caminho da Administração Concertada

AutorMaíra Ayres Torres
Páginas111-131

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1. Das regras gerais de participação e da divulgação de informações

No que concerne ao capítulo de criação dos mecanismos de participação e de prestação de contas, instrumentos estes inseridos no contexto da tão propagada accountability, tem-se que o desenho institucional buscado pautou-se na premente preocupação de minimizar os riscos de um suposto déficit democrático1, do qual as agências reguladoras encontrar-se-iam maculadas.

Em tal esteira, as proposições aqui expostas estão em sintonia com a doutrina que propugna pelo reconhecimento de que a legitimidade dos atos advindos de tais entidades pode emergir de um hígido procedimento que se desenvolva no bojo daquelas, razão pela qual não se cogitaria de qualquer vício

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intrínseco à natureza das agências reguladoras2. É dizer, a dita legitimidade pelo procedimento3é que seria tida como o mote indelével das agências reguladoras do Novo Século.

Explica-se. Parte considerável da doutrina pátria4 ocupou-se, nos primórdios da configuração do modelo de agências reguladoras, de questão relacionada à legitimidade dos atos emanados daquelas, visto que as mesmas não continham, em sua composição estrutural, membros oriundos de um processo de eleição, sobre os quais repousasse a chancela popular, tal qual ocorre com os integrantes do Poder Legislativo e com a chefia do Poder Executivo.

Destarte, questionou-se, sobremaneira, se o grau de legitimidade da tomada de decisão advinda de tais atores seria ou não aceitável no bojo de um Estado Democrático de Direito. Em suma, o batismo popular, muito embora revistase como um instituto de garantias e contornos desejáveis em sede de um ambiente democrático, restou, em alguma medida, mitigado pela necessidade de estruturação de entidades que primassem pela tecnicidade e acuidade no ambiente da

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regulação, dotadas de independência e autonomia5para a tomada de decisões desvinculadas, em certo grau, do caráter político das decisões governamentais.

Oportuno anotar aqui, sem se aprofundar no tema, que esta crítica já restou superada pela doutrina, ressurgindo, vez ou outra, como parte de pura retórica de quem objetiva assumir a defesa de uma política autoritária de concentração de poder6, contrária à moderna configuração policêntrica dos Estados globalizados.

Preliminarmente, resta assentar alguns pontos que servem como fio condutor para as premissas ora adotadas, logrando-se a ratio de elaboração dos institutos e mecanismos a seguir vislumbrados. Com o fito de reduzir eventuais arguições de insulamento burocrático7das agências reguladoras, em uma suposta seara de corpo técnico e pouco receptivo às demandas e pleitos sociais, as medidas aqui propostas conjugam, no mais das vezes, um propiciar de conciliação de uma estrutura dotada de membros com elevado grau de qualificação na área regulada

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pertinente à agência, aliado a um canal direto de comunicação com a sociedade civil, a fim de replicar na política regulatória os anseios da coletividade, bem como externar maior transparência em seu cotidiano de atuação.

Nesse sentido, os cânones, tão repisados na moderna doutrina administrativa que dizem respeito ao fomento de um ambiente marcado pela consensualidade8, democracia participativa9e ampla divulgação da tomada de contas dos agentes públicos (accountability)10merecem ser prestigiados nas relações entre atores intermédios e governamentais, demarcando-

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se como traço distintivo no âmbito das agências reguladoras.

Desse modo, pensar a configuração das agências reguladoras olvidando-se tais pontos de partida é eivá-las do mais deletério vício que poderiam ostentar, ou seja, predestinálas ao verdadeiro insucesso. Razão pela qual impende ressaltar que a fisiologia dos organismos aqui desenhada deu-se com a máxima preocupação de minar as referidas barreiras naturais a que a própria doutrina administrativa há muito já alertara.

Destaca-se, nesse ínterim, que o mandamento do caput do preliminar dispositivo deste capítulo do anteprojeto de lei ("Com o objetivo de viabilizar a participação da sociedade nos processos administrativos, cada agência reguladora disponibilizará, por diversos meios, o conjunto de informações necessário."), ao asseverar que a participação e a manifestação dos interessados dar-se-á de forma ampla e revestida da gama de informações que se faça imprescindível para tanto, garantindo-se, em grau satisfatório, a prestação de contas de tais entidades, por meio do controle externo - exercido pelo crivo popular ou mesmo pelos órgãos de controle incumbidos de tal mister -, intenciona, primordialmente, o alcance de uma participação efetiva e não meramente formalista11.

Nesse diapasão, a concepção de uma estrutura de agência que seja permeável ao controle externo pressupõe, prima facie, a modelagem de um arcabouço documentado de toda a atuação e do passo a passo da política regulatória pretendida. Não por outro motivo, o texto prossegue ("Sem prejuízo de outros institutos que venham a ser adotados, considerar-se-á como de observância obrigatória a divulgação do seguinte conjunto de informações: I - agenda regulatória plurianual: a ser divulgada a cada quatro anos, conterá as diretrizes gerais da política regulatória da agência reguladora, tendo como base os planos plurianuais expedidos pelo governo federal; II - agenda anual; III - relatório anual de Atividades da

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Agência; IV - relatório anual de comportamento dos agentes regulados;") salientando a necessidade de manutenção, como exigência legal, atribuída em grau mínimo, frise-se, de tudo o que seja objeto de produção pelas agências reguladoras como decorrência do processo de prestação de contas12a que as mesmas encontram-se submetidas.

As agendas e os relatórios ali designados são mecanismos imprescindíveis para que a tomada de contas sobre tais entes dê-se em patamar, preliminarmente, desejável; caso contrário, a transparência e o exercício por parte dos controladores podem restar comprometidos, desestruturandose o processo de fiscalização da conduta perpetrada por tais agências independentes.

Acrescente-se, por oportuno, que a sistematização e a padronização do controle por meio da instituição de agendas prospectivas e da elaboração contínua de relatórios com periodicidade monitorada permite uniformizar os mecanismos de controlabilidade no âmbito das agências reguladoras federais, concentrando-os em documentos acessíveis e, primordialmente, pontuais.

Convém destacar, nesse passo, que a opção por exigir que sejam divulgados, pelas agências, as agendas e os relatórios acima mencionados visa a exigir dos agentes reguladores uma postura comprometida com o princípio do planejamento13. Como cediço, toda ação política, para ser eficiente, deve ser antes bem planejada. No caso de políticas regulatórias, tal condição se torna ainda mais crucial. Daí porque, a obrigação cometida aos agentes reguladores de, periódica e sistematicamente, divulgar agendas de atuação e relatórios de resultados tem o condão de impingi-los a planejar suas ações e, constantemente, analisar os

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êxitos e fracassos alcançados, de modo a rever o planejamento anteriormente traçado.

Importa também assentar que a determinação de elaboração de agendas plurianuais e anuais tal qual ocorre com a sistemática de planejamento do Poder Executivo não se deu por mera coincidência, ao revés. Há nessa previsão a inequívoca intenção de atrelar o planejamento das políticas regulatórias ao planejamento das políticas públicas em geral, em especial àquelas voltadas ao setor regulado. Isto porque a função regulatória, conquanto deva ser imune a injunções políticas de caráter egoístico, não pode e não deve ser impermeável a considerações políticas de cunho programático.

Em outras palavras, é dizer que os agentes reguladores devem pautar suas atuações por critérios técnicos que não se deixem influenciar pelo jogo político, este entendido enquanto disputa de interesses pessoais. Todavia, não podem tais agentes olvidar-se de que sua função é a de conduzir de maneira técnica o desenvolvimento de uma política pública definida por agentes políticos que receberam uma chancela popular para tanto.

É gratificante ver, assim, que a regulação bem exercida é aquela que não abandona a boa técnica para atender a interesses políticos, ao mesmo passo que não se utiliza do argumento técnico para desrespeitar políticas públicas definidas a partir de um programa político que tenha se revelado vencedor nas urnas e que se encontre albergado pela pauta programática constitucional.

Se assim o é, tem-se que as agendas políticas e regulatórias devem caminhar de forma parelha, evitando-se sobreposições ou distanciamentos indesejáveis. De tal sorte que, definido um plano de ações (plurianual e/ou anual) pelos agentes políticos, impositiva se torna a sua complementação mediante a elaboração de um plano de ações pelos agentes reguladores, sob pena de o planejamento estatal como um todo restar deficiente. Por isso é que, estando o Poder Executivo obrigado constitucionalmente a apresentar planos plurianuais e anuais, devem os agentes reguladores ser obrigados a elaborar, no mínimo, agendas de atuação com a mesma periodicidade, a fim de complementá-los.

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Essas previsões não impedem, todavia, o alargamento do rol de documentos a serem criados no bojo do poder normativo das agências reguladoras, quando da configuração de seus próprios regimentos internos, não se admitindo, ao revés, a redução do rol já descrito em sede da legislação geral, que ora se projeta, sob pena de aviltamento das garantias e instrumentos minimamente aptos ao exercício de um efetivo planejamento e controle.

Nos termos propostos, tem-se que, por meio do conjunto dos aparatos de controle...

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