Os Paradoxos da Conciliação

AutorMárcio Tulio Viana
Ocupação do AutorProfessor na Faculdade de Direito da PUC-Minas.
Páginas74-86

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Introdução

Quando o meu pai ainda era vivo, gostava de me contar a curiosa história de duas velhas tias - Idalina e Isolina. Mesmo sabendo que eu já a conhecia de cor, ele sempre a repetia, com um sorriso maroto, e quase posso vê-lo espichado na rede, do lado esquerdo da varanda, enquanto a noite ia caindo em nossa pequena fazenda.

Idalina era bonita; tinha, quem sabe, olhos verdes, e cabelos em cachos sobre os ombros. Isolina era feia; além disso, ou por isso mesmo, passava da idade de casar. As duas seriam filhas de quem? Não me lembro. Digamos que o pai fosse João, e a mãe, Candinha.

Naturalmente, foi Idalina, e não Isolina, quem conquistou o Evaristo. E assim ficaram noivos. Na véspera do casamento, João e Candinha conversavam na cama:

- Pois é, Candinha, a Idalina vai se casar...

- É, João, ela vai se casar...

- Mas quem devia se casar era a Isolina. A Idalina é moça bonita, arranja marido quando quiser.

- Sim, mas foi ela que o Evaristo escolheu.

- Escolheu, mas escolheu errado; e sabe de uma coisa? Eu vou dar um jeito nisso!

- Mas que jeito? E o Evaristo?

- Ora, o Evaristo é um moço bom, e o que ele quer é entrar pra família...

Dito e feito. Amigo e talvez parente do padre, João o convenceu a pecar.

- Naquele tempo - meu pai me dizia -as moças se casavam de véu. Um véu comprido, caindo no rosto.

Pois Candinha caprichou no véu da filha, o padre evitou dizer seu nome e foi só depois, no avanço tímido para o primeiro beijo, que o Evaristo - mineiramente - estranhou:

- Uai, é você, Isolina?

- Sou eu.

E depois de hesitar um segundo:

- Tá bom.

João tinha razão. Evaristo era um bom homem, e o que queria mesmo era se casar com a família.

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Além disso, era um grande caçador de pacas. Em poucos anos, já fazendeiro, lá ia ele, bem cedinho, de polveira em punho, saindo à procura dos bichos; isso quando a preguiça não o jogava na rede, onde dormia contando casos, assim como o meu pai fazia. Ao passo que ela, mulher da Bíblia, corria a fazenda a cavalo, governando os caboclos, cheirando as folhas do cafezal ou apreciando os ubres fartos de suas vacas malhadas.

Tão forte era a personalidade de Isolina que o Evaristo lhe herdou a fama e o sobrenome. Nas redondezas, todos o conheciam por Evaristo Mendes, o Mendes dela, não dele, o Mendes que o meu pai também não tinha, e muito menos tenho eu, mas que se entrelaça com os antigos Viana das belas e sensuais montanhas do nosso Sul de Minas.

- E a Idalina? Eu lhe perguntava sempre, como se não soubesse a resposta.

- A Idalina acabou se casando com outro, mas deu em nada, era uma mulher comum - respondia o meu pai, rindo sempre, satisfeito pela pergunta, que ele também já previa.

Hoje, quando penso em conciliação, lembro-me dessa pequena história, que também me traz saudades de meu velho e querido Professor Lourival. E é a partir dela, se os amigos me permitem, que irei expor algumas ideias - todas elas muito simples, fruto apenas da experiência e não da suposta sapiência de um ex-juiz do interior.

O véu

Comecemos pelo véu sobre a noiva. Eu diria que há um véu como este, escondendo o trabalhador. Ele comparece ao juiz disfarçado de reclamante; a cada instante, enfatiza-se a sua qualidade de uma das partes no processo, como se o processo se dividisse em dois, metade para cada lado.

Graças ao véu, as relações se apresentam iguais. A própria imagem da Justiça nos acena com a sua balança de dois pratos, cada qual com o mesmo peso e medida. Além disso, os livros nos ensinam que ela é - ou deve ser - imparcial e neutra. Até o ônus da prova tem de ser igual...

No inconsciente do juiz, pode parecer até que as posições se invertem. Enquanto está na sua empresa, é o empregador quem ordena, exige, reclama - ao passo que o empregado escuta, silencia, obedece. Já no fórum, é o trabalhador quem se queixa, acusa, requer - e o ex-patrão é o acusado, o acuado, o réu.

Mas as aparências enganam.

Naturalmente, o poder do empresário é mais visível em seus próprios domínios. Como sabemos, a parte forte, na relação de emprego, não é o credor, é o devedor; pois como o salário vem quase sempre depois do trabalho, quem está habitualmente devendo não é o empregado, mas o empregador.

E o empregador é a parte forte porque detém em suas mãos a fonte de sobrevivência do empregado. E por ser forte dirige não apenas o seu braço ou a sua mente, mas a própria norma que o protege - aplicando-a quando, como, onde e quanto quer, e muitas vezes se quiser1.

Assim, ao contrário do Direito Civil, o Direito do Trabalho não se cumpre espontaneamente - pelo menos por inteiro. A falta de uma norma de proteção se reflete em toda a CLT, roubando a eficácia das outras normas2. O empregado não exercita o seu ius resistentiae3. E só procura a Justiça quando - já tendo perdido o emprego - não tem mais o que perder.

Ora, essa situação o torna um demandante vulnerável. Também ao contrário do que acontece na esfera civil, ele depende do resultado da demanda para sobreviver. E isso significa que tem pressa em receber, o que o leva a aceitar baixos acordos.

Hoje, essa distorção se agrava. Ainda que no Brasil estejamos vivendo uma fase de quase pleno emprego, não é esta a tendência mundial, e por isso (além de outras razões4) o trabalhador respira um ar de insegurança - como se nota, por exemplo, pela avalanche crescente dos que prestam concursos públicos.

Por tudo isso, se levantarmos o véu, veremos que também o acordo trabalhista tem muito pouco - ou quase nada - de uma transação no cível, em que

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as partes podem enfrentar muito melhor os riscos, inclusive o risco do tempo. Afinal, ambas preservam a sua fonte de renda; discutem inventários, trombadas, questões de família; não dependem da própria demanda para sobreviver.

É verdade que nem sempre foi assim. Nos tempos da estabilidade decenal e da indenização de antiguidade, quando o desemprego também era menor, é provável que o acesso à Justiça fosse mais efetivo durante a relação de emprego. Nesse sentido, a CLT era realmente um sistema, equilibrando pesos e contrapesos5 - e assim foi até a criação do FGTS.

É verdade, também, que há outras variáveis em jogo. Nos meus tempos de juiz, eu observava, por exemplo, que as mulheres, mais do que os homens; e os engenheiros, mais do que outros profissionais liberais, pareciam ter mais dificuldade em entender e aceitar a dinâmica do acordo. Às vezes, intimamente, eu os criticava pela excessiva rigidez; mas talvez eles tivessem mais razão do que eu.

Seja como for, a variável mais forte é mesmo a desigualdade. Aliás, ela não acontece apenas no momento do acordo. Como certa vez também notei6, começa na porta do fórum, onde advogados sem escrúpulos aliciam trabalhadores; entra na sala de audiências, cujo ar solene e sagrado reconduz o empregado ao escritório do patrão; contamina as falas do juiz, que soam familiares para um, mas quase um mistério para o outro; perpassa os depoimentos das partes e de suas testemunhas, facilitando mentiras ou às vezes dificultando verdades.

Tudo isso me faz crer - tecnicismos à parte - que além do processo formal, com seus prazos e seus atos, seus ritos e sua mística, existe um verdadeiro processo informal, cujas regras são difusas, caóticas e incontroladas, e por isso mesmo (embora não só por isso) pouco estudadas e percebidas. Como na série Aliens, esse segundo processo habita o corpo do primeiro, afetando a prova e - por extensão - a sentença.

O conluio

Analisemos o conluio. Provavelmente, para os parentes e amigos que lotavam a igreja, as autoras da farsa tinham sido apenas as irmãs. No entanto, vários outros atores haviam participado da cena: os pais, o padre, talvez até o sacristão ou alguma comadre.

De forma análoga, o acordo trabalhista não interessa apenas às partes. Há outros personagens envolvidos, com interesses próprios e inconfundíveis.

O advogado é um deles - especialmente quando em começo de carreira e atuando pelo reclamante. Ele depende de um dinheiro rápido para equilibrar suas contas, ou pelo menos para almoçar a quilo e talvez levar a namorada ao cinema.

O juiz é outro interessado. Vive às voltas com os prazos, com as cobranças, e de um modo geral tenta pelo menos não aumentar ainda mais as demoras; e sem os acordos seria engolido de vez pelos outros processos - cuja complexidade é crescente. Pode-se culpá-lo por isso? É claro que não. Age quase em legítima defesa... E mais ainda se no estágio probatório, com as corregedorias em cima.

É claro que ele também pode se ver tentado a trabalhar menos, para melhorar sua qualidade de vida - pretensão que hoje ganha legitimidade, já que entra em compasso com o hedonismo, os subjetivismos, a hipertrofia do presente7 - elementos fortes da pós-modernidade. Mas trabalhar menos, conforme o caso (ou o juiz), também pode significar adoecer menos, morrer menos, trabalhar melhor.

Outro personagem é a Justiça do Trabalho. Num tempo em que o Estado perde força e legitimidade, o Poder Judiciário, como um todo, se desgasta; e mais ainda o Trabalhista, na mesma medida em que o trabalhador se torna menos cidadão e o trabalho subordinado mais se degrada.

A propósito, é curioso notar como o prestígio de cada um dos ramos da Justiça parece vincular-se ao seu objeto e aos seus destinatários. A mais valorizada é a Federal, que julga o próprio Estado - como autor ou réu. Vem depois a Justiça Comum Civil, que lida com a propriedade, a herança e a família. No fim da linha, a Justiça do Trabalho e a Criminal, ou vice-versa.

Esse prestígio - ou a falta dele - se reflete na percepção que a sociedade passa a ter do juiz, do advogado e até da disciplina acadêmica correspondente. Do mesmo modo que o advogado criminalista

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é "de porta de xadrez", a Justiça do Trabalho é um "balcão de negócios" e o Direito do Trabalho uma espécie de subciência...

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