Panorama Atual da Resolução de Conflitos

AutorMarco Aurélio Serau Junior
Ocupação do AutorMestre e Doutor em Direitos Humanos (Universidade de São Paulo). Especialista em Direito Constitucional (Escola Superior de Direito Constitucional) e Direitos Humanos (Universidade de São Paulo). Professor universitário e de diversos cursos de pós-graduação, em todo o Brasil
Páginas92-125

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O Capítulo 3 cuida de expor, em linhas gerais, os mecanismos de resolução de conflitos, o acesso à justiça e sua crise numérica e qualitativa, bem como as modalidades de resolução alternativa e consensual de conflitos, preparando as bases teóricas da discussão sobre os mecanismos adequados de resolução do conflito previdenciário, debatidos no último capítulo.

3.1. Mecanismos de resolução e tratamento adequado de conflitos

Os Estados modernos consolidaram a crença na solução jurisdicional dos conflitos. A his-tória da jurisdição estatal é a história do próprio Estado Moderno, pois à medida que ocorreu a concentração de poder político ocorreu também a criação do monopólio da jurisdição, afastando as demais modalidades de solução de controvérsias, as quais passaram a ser somente toleradas pelo ordenamento jurídico128 (LORENCINI, 2009: 603-608; MANCUSO, 2009: 48-49).

Mas isto não é uma relação necessária. Cada sociedade desenha o quadro de métodos de resolução de conflitos conforme suas expectativas a respeito de segurança, justiça, forma e violência (SILVA, 2012:2-3). Os conflitos podem ser limitados e controlados por formas institucionais (acordo coletivo, sistema judicial), atores sociais (mediadores, conciliadores, árbitros, juizes, policiais), por normas sociais (equidade, justiça, bem-estar, não violência, integridade da comunicação), regras de negociação ou por procedimentos específicos (sessões públicas ou confidenciais, p. ex.). Existem, portanto, várias formas sociais de trato do conflito (DEUTSCH, 1973: 377).

Os meios de resolução de conflitos podem ser agrupados em três modalidades: a) os meios unilaterais de prevenção ou resolução de controvérsias, como a autotutela ou autodefesa, assim como a renúncia, a desistência, a confissão e o reconhecimento do pedido; os meios bilaterais ou

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policêntricos, a saber: b) autocomposição, quando os próprios interessados resolvem o conflito, como a partir dos mecanismos de mediação e conciliação; e c) heterocomposição, quando a solução não é diretamente alcançada pelos próprios interessados, como é o caso da jurisdição estatal ou de órgãos paraestatais, como arbitragem, o juiz de paz e as Comissões de Conciliação Prévia nos conflitos trabalhistas (TARTUCE, 2008: 37-86; MANCUSO, 2009:183-282).

No Brasil predomina a solução adjudicada dos conflitos, por meio da sentença judicial ("cultura da sentença"129), o que, diante da tão alegada crise judiciária, faz aflorar a necessidade de outros mecanismos de solução de conflitos, especialmente pela forma consensual (WATANABE, 2011: 4-5).

Embora no sistema jurídico o processo civil detenha a primazia dentre os mecanismos de solução de controvérsias, há amplo panorama de mecanismos de solução de conflitos (TARTUCE, 2008: 86-90). Assim, o acesso à justiça não deve ser confundido com acesso à via jurisdicional; a garantia constitucional de acesso à justiça (art. 5a, inciso XXXV) não equivale ao direito de ação, mas à ordem jurídica justa, isto é, existem diversos mecanismos de solução de controvérsias, dos quais um despontará como o mais adequado ao conflito em tela (WATANABE, 2011:4; MANCUSO, 2009: 53-54).

Há expressivo movimento doutrinário que cogita reduzir o alcance da cláusula do acesso à justiça prevista no art. 5a, XXXV, da Constituição Federal, limitando o acesso ao Poder Judiciário130, que se converteria apenas em cláusula de reserva ou mecanismo apenas subsidiário dentro de um contexto bem mais vasto de técnicas de resolução de conflitos sociais (MANCUSO, 2012:140-148).

O art. 5a, inciso XXXV, da Constituição Federal, não estaria a garantir o direito à demanda, mas apenas a evitar que o legislador, de legeferenda, subtraísse do Poder Judiciário a possibilidade de apreciação de violações ou ameaças a direitos, sendo que tal atribuição não lhe seria, abstraía- mente, exclusiva (MANCUSO, 2011: 195-196).

Conforme Mancuso (2011:22), "ajurisdição, tradicionalmente conectada à prestação outorgada pelo braço judiciário do Estado, [...] hoje está defasada e é insuficiente, cedendo espaço à concepção pela qual o Direito á de se ter como realizado, não, sic et simpliciter, pelo fato de um texto ser aplicado a uma controvérsia pelo Estado-juiz (da mihifactum dabo tibi jus), mas sim quando um conflito resulte efetivamente prevenido ou composto em modo justo, tempestivo, permanente, numa boa equação entre custo e benefício, seja por meio de auto ou heterocomposição, neste último caso pela intercessão de um órgão ou agente qualificado, mesmo não integrante dos quadros da Justiça oficial e, em alguns casos até preferencialmente fora dela".

O contorno ideal da prestação jurisdicional indica que deva ser substitutiva, subsidiária e resi-dual131, reservando-se apenas às crises jurídicas complexas, relevantes, que demandem cognição ampla e exauriente, bem como as controvérsias refratárias às ou insuscetíveis de resoluções por outros meios, que não os judiciais, em virtude de peculiaridades de pessoa ou matéria (MANCUSO, 2011: 32). Campo que Salles (2011: 92-95) denomina de reserva de jurisdição, isto é, um espaço

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onde não pode ser afastada a resposta judicial, único meio viável para a produção de efeitos jurídicos válidos em certos casos, sendo necessária a passagem judiciária - tomando por empréstimo a expressão de Rodolfo Mancuso.

Trata-se de delimitar a prioridade, mas não a centralidade da jurisdição: a tutela jurisdicional dos direitos é uma atividade constitucional necessária, que o legislador ordinário não pode restringir ou eliminar, mas isso é diferente de ter a resposta judicial como primeiro e único remédio para a tutela de direitos (LUISO, 2005: 575-576). Em outras palavras, a questão do acesso à justiça não se resumiria à reforma da instituição judicial, mas na busca dos papéis que esta exerça bem e daqueles em que isso não ocorre (GALANTER, 1984:187).

Ademais, compreender que os Tribunais possuem papel limitado na solução de conflitos não corresponde a dizer que possuem papel menor. A importância das cortes judiciais não é somente a de decidir uma demanda, em instância final, mas propiciar uma ampla base de discussão para as partes em conflito - nos diversos conflitos que se repetem na sociedade de massa. Mais relevante do que a definição dos direitos em concreto é a indicação de quais são esses direitos, como devem ser interpretados e como fazer valê-los, pois as regras jurídicas "no papel" não conseguem se promover por si mesmas (GALANTER, 1984:157-159).

A justiça não se encontra apenas nas decisões proferidas pelos Tribunais. A ideia das três ondas de acesso à justiça desenhada por Mauro Cappelletti significa mais do que simplesmente a reforma das instituições judiciárias. Não se trata apenas de uma metáfora espacial, mas da busca de novas formas de respostas aos conflitos, adaptando os organismos de julgamento (não somente judiciários) às especificidades das reclamações e dos sujeitos em conflito, de modo que os interesses possam ser dirimidos por um órgão qualificado. Isso corresponde ao abandono do centralismo jurídico como mecanismo de solução de conflitos (GALANTER, 1984: 151-153).

O acesso à justiça, inicialmente dotado de perspectiva meramente processualista, de cará-ter individualista e patrimonial, conforme a tradição romanística do próprio conceito de ação (MANCUSO, 2012: 138), desenvolve-se e adquire status de direito fundamental, passando a ser compreendido como exercício de cidadania. O desenvolvimento não se alcança sem a plena garantia de acesso à justiça, vista em si mesma como direito fundamental.

As reformas processuais contemporâneas seguiram três ondas renovatórias, conforme elaboração de Mauro Cappelletti. Uma primeira onda de renovação, ligada às questões económicas do processo, solucionadas por meio da prestação de advocacia gratuita ou benefícios de assistência judiciária gratuita; uma segunda onda renovatória, ligada à criação de novos mecanismos processuais adequados aos direitos difusos, e a terceira onda, relativa aos meios alternativos de solução de litígios (CAPPELLETTI, 2008: 387-389), típicos das welfare societes (CAPPELLETTI, 2010: 74).

Também pode ser mencionada a constitucionalização das regras e sistemas de processo civil, o foco no jurisdicionado (CAPPELLETTI, 2008: 330-343,391-393), a instrumentalidade do processo em relação à natureza do direito substancial discutido nos autos, inclusive em seus aspectos socioeconômicos (CAPPELLETTI, 2010: 32, 37-38), como outras grandes tendências atuais das reformas das legislações processuais.

O acesso à ordem jurídica justa comporta preocupação não somente com a entrada no sistema de solução de conflitos, mas sobretudo com a qualidade da saída propiciada ao cidadão (MANCUSO, 2012: 173-174).

Antes de analisarmos os mecanismos alternativos de solução de conflitos deve-se atentar para o conceito de "adequado tratamento dos conflitos". Certamente algo mais profundo e que não se limita à proposta contida na Resolução n. 125/10 do Conselho Nacional de Justiça, tendente unicamente à diminuição de acervo judicial ou vinculada à resolução de processos judiciais.

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A sobrecarga do Poder Judiciário, decorrente do número excessivo de processos, impôs a necessidade da criação de uma...

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