Sobre a origem medieval de noções modernas como a de Direitos Humanos

AutorWillis Santiago Guerra Filho
CargoProfessor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Páginas15-40
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P A N Ó P T I C A
Panóptica, Vitória, vol. 8, n. 2 (n. 26), p. 15-40, jul./dez. 2013
ISSN 1980-775
SOBRE A ORIGEM MEDIEVAL DE NOÇÕES MODERNAS
COMO A DE DIREITOS HUMANOS
Willis Santiago Guerra Filho*
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS E METODOLÓGICAS
Do que aqui se trata é de investigar a origem mais próxima daquela que se pode considerar a
própria matriz geradora do pensamento da concepção internacionalista do direito e dos direitos,
de cunho jusnaturalista, mas não aquele universalista e racionalista da modernidade, mas sim um
outro, tardo-medieval, produzido no âmbito da chamada Escola de Salamanca, pertencente à
época e espírito da contra-reforma, com sua segunda Escolástica, espanhola, em que se destacam
teólogos filósofos como o andaluz, granadino Pe. Francisco Suárez (1548 1617) e o teólogo
jurista de Burgos, em Castilla, Francisco de Vitoria (1486/1492 1546).
Como é sabido, modernamente passa-se a enfatizar o aspecto permissivo da
normatividade, a esfera de liberdade que transcende os limites objetivos impostos pelas
proibições morais e religiosas, a licentia laica. Já Hobbes, por exemplo, apontará o caráter
insustentável de uma situação em que todos dispunham livremente de uma faculdade de tudo
fazer, de um jus omnium in omnia, uma “guerra de todos contra todos”, donde decorreria para ele a
necessidade de se impor limites, com o respaldo em um poder com supremacia e reconhecimento
social o Estado civil -, a fim de garantir e efetivar direitos individuais, os poderes dos
indivíduos, que são seus direitos subjetivos. Antes do “positivismo contratual” hobbesiano,
contudo, foi o nominalismo medieval que tornou possível o aparecimento da noção
propriamente dita de um direito como atributo de um sujeito, que o torna direito seu,
propriedade exclusiva do indivíduo, a qual lhe é inerente. Tal noção já se encontra entre
nominalistas “parisienses” como Jean Gerson, no século XV, bem como em juristas-teólogos
espanhóis da “segunda escolástica”, a exemplo dos “regicidas” domenicanos, como o já referido
Francisco de Vitória, seu discípulo Domingo de Soto (1507 1519), juntamente com seu amigo,
jurista, Fernando Vázquez de Menchaca (1512 1569) e de jesuítas como Luis de Molina (1535
* Professor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidad e Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO); Professor e Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos do P rograma de
Estudos Pós-Graduados da PUC-SP; Pesquisador da Universidade Paulista (UNIP ).
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Panóptica, Vitória, vol. 8, n. 2 (n. 26), p. 15-40, jul./dez. 2013
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1600). Sua origem mais remota, contudo, está no pensamento de Guilherme de Ockham,
desenvolvido na esteira daquele de Duns Scot, como pretende-se aqui demonstrar.
Scotus, ao contrário de Tomás, não terá muita aceitação na teologia oficial da Igreja, mas seu
pensamento, elaborado de maneira difícil e intricada, no curto espaço de tempo em que viveu,
terá uma repercussão por assim dizer subterrânea, juntamente com aquela de seu maior sucessor,
Guilherme de Ockham, que se fará notar tanto na novidade da Segunda Escolástica, da Escola de
Salamanca, onde pioneiramente se proporá, em termos jurídicos, a idéia de um direito
internacional, assim como na própria ruptura com o catolicismo, feita por Lutero, e também, por
mais paradoxal que pareça, na ordem jesuíta, criada por Santo Inácio de Loyola para ser uma
espécie de baluarte contra-reformista. A rejeição da Igreja para com as idéias desta corrente, de
Scotus e Ockham, deve-se também ao modo como eles se engajaram em disputas envolvendo o
papado e os poderes seculares, pelo modo como repercutiam na ordem franciscana, com seu
voto de pobreza e, ao mesmo tempo, grandes posses. Adiante veremos, pela importância que tem
para a formação do direito, e da modernidade em geral, a chamada Querela da Pobreza
Franciscana, que teve Ockham como principal protagonista, e que o torna até hoje alguém
encarada com severas restrições, nos círculos mais conservadores da Igreja católica. Scotus,
ainda que em 1993, foi beatificado pelo Papa João Paulo II, provavelmente em
reconhecimento à sua contribuição filosófica, inclusive para aquela corrente à qual o Papa,
quando era o Prof. Woytila, discípulo de Roman Ingaarden, se filiava: a fenomenologia, da qual
também trataremos, quando estivermos estudando já a época contemporânea. A disputa ou
“querela” de grande importância, em que se envolveu com muito destaque Scotus, tinha (e tem
ainda, pois hoje continua sendo debatida) caráter muito mais abstrato, teórico, embora, como
sempre, a resposta que se dê a tais questões fundamentais venha a ter grande impacto na vida
prática. Trata-se da chamada “Querela dos Universais”, ainda presente nas discussões sobre o
universalismo de categorias como a dos direitos humanos.
Toda exposição parte de pressupostos, pressupostos estes que, dependendo do campo do
saber, serão axiomas, postulados, hipóteses ou mesmo dogmas, como ocorre mais
freqüentemente em teologia e em Direito, mas também em filosofia, considerando como dogmata
o conjunto de teses em que se sustenta uma doutrina ou sistema filosófico.1 Em se tratando de
1 Nesse sentido, Victor Goldschmidt, “Tempo histórico e tempo lóg ico na interpretaçã o dos sistemas
filosóficos”, in: id., A Religião de Pla tão, trad.: Ieda e Oswaldo Porchat Pereira, São Paulo: DIFEL, 1963, p. 139.
Também, com apoio em E. Husserl, pode-se considerar a postura dogmática como a única alternativa que se
apresenta a quem acredita na po ssibilidade d e um acesso à verdade pelo conhecimento, repelindo o ceticismo -

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