Reestruturação organizacional e reconstrução da identidade: um estudo de caso em uma empresa de telecomunicações

AutorDaniela Cristina Soares, Adriane Vieira
CargoMestre em Administração pela FEAD. - Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Páginas92-115

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Daniela Cristina Soares 1

Adriane Vieira 2

1 Introdução

A aceleração das inovações tecnológicas, no contexto da globalização da economia, vem provocando uma forte turbulência no ambiente

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empresarial, especialmente nos serviços de telefonia e telecomunicações, essenciais para a transmissão de informações, gerando constantes reestruturações organizacionais que visam obter maior produtividade e rentabilidade.

Para os trabalhadores, um dos reflexos desse contexto tem sido conviver com mudanças caracterizadas, principalmente, pela redução drástica dos empregos formais, permanência menos duradoura nos postos de trabalho, passagem por diversas empresas durante a carreira e tendência ao trabalho autônomo e/ou terceirizado.

Essas mudanças demandam atenção no que se refere ao acompanhamento de seus desdobramentos e busca de solução para os problemas desencadeados, como angústia, sofrimento e adoecimento. Tudo isso interfere diretamente na identidade profissional, construída no meio social e através do exercício do trabalho.

Borzeix e Linhart (1996) constataram, por meio de estudos sobre as relações entre identidade e ação coletiva no interior das organizações, que a identidade não é dada pela posição ocupada pelo indivíduo na instituição ou na categoria profissional à qual pertence, mas construída em função de incidentes e acontecimentos que a alimentam e se atualizam em conformidade com as circunstâncias que lhe conferem voz e forma. Desse modo, um mesmo grupo pode passar por diversas configurações de identidade, nos diferentes momentos de sua história, conforme os recursos oferecidos pelas situações. Toda alteração de sua composição interna, todo rearranjo do ambiente técnico ou organizacional, todo episódio excepcional (como um conflito) pode colocar em questão, de forma momentânea ou definitiva, essa configuração. A identidade coletiva ou social aparece, então, como um ajuntamento provisório e precário, diretamente ligado às situações sociais de que, em parte, ela é um produto? (BORZEIX; LINHART, 1996, p. 105).

Segundo Freitas (2002), o que tem propiciado o aumento da importância do papel das empresas na construção das identidades é a crise de identidade pela qual passam as pessoas, originada pela ênfase na racionalidade, na quebra das referências culturais e no esfacelamento da ética e da moral. Isso faz com que as pessoas se mostrem receptivas a acatar mensagens e aceitar líderes organizacionais que possam oferecer respostas para as incertezas quanto ao melhor caminho a seguir e que deem um sentido para suas vidas. Contudo, no atual contexto, as organizações têm fornecido apenas referências contraditórias, pois pregam que o indivíduo deve ser combativo, agressivo e

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individualista, ao mesmo tempo em que exigem colaboração e trabalho em equipe. Mensagens incoerentes como essas, somadas à impossibilidade da reciprocidade da energia investida nos vínculos, segundo Sennett (2001), têm corroído o caráter humano, gerando uma ansiedade que afeta os comportamentos, levando as pessoas à desconfiança e ao isolamento, aumentando o individualismo e a competição entre elas.

Nessa perspectiva, surge a proposta deste estudo: analisar os impactos da reestruturação organizacional, ocorrida em uma operadora de telefonia celular, na identidade dos analistas e gestores de equipe envolvidos no processo.

Visando à preservação da identidade da empresa, objeto deste estudo, optouse por utilizar a identificação genérica de Empresa Sigma? nas referências à organização pesquisada. Os sujeitos da pesquisa, 22, foram ouvidos por meio de entrevista semiestruturada e dados secundários foram coletados, objetivando complementar as informações. Na sequência deste artigo será apresentado referencial teórico que deu suporte à análise dos dados, abordando os temas: mudanças nas relações de trabalho na contemporaneidade, conceito e construção da identidade e identidade no trabalho. Em seguida são apresentadas as características centrais do caso estudado, o detalhamento da metodologia de pesquisa, a análise e a descrição dos dados coletados, para encerrar, são apresentadas as considerações finais dos pesquisadores.

2 Referencial Teórico
2. 1 Mudanças nas Relações de Trabalho na Contemporaneidade

De acordo com Garcia (2004), a globalização se caracteriza, em parte, por um processo de reorganização da divisão internacional do trabalho, acionado pelas diferenças de produtividade e de custos de produção entre países. Antes da III Revolução Industrial, os países semiindustrializados, como o Brasil, apresentavam como característica distintiva o emprego de grande volume de mão de obra de baixo custo, representando um diferencial competitivo em relação aos países desenvolvidos, que contavam com trabalhadores mais qualificados e onerosos. A saída encontrada pelas empresas, para aumentar os lucros e a competitividade no mercado, foi a transferência de boa parte da produção para os países semiindustrializados e, também, o emprego de tecnologia de informação que, por sua vez, provocou a elevação da taxa de desemprego (GARCIA, 2004).

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A III Revolução Industrial é fruto da introdução da tecnologia de informação ? TI, um

[...] complexo tecnológico que envolve computadores, softwares, redes de comunicação eletrônicas públicas e privadas, rede digital de serviços de telecomunicações, protocolos de transmissão de dados e outros serviços (CAMPOS; TEIXEIRA, 2004, p. 3),

mas, também é resultante, na visão de Srour (1998), de outras mudanças que afetaram e transformaram o mun do do trabalho, como o modelo de gestão da qualidade que projetou o Japão como exemplo mundial de produção, a partir da década de 1980.

No Brasil, as mudanças nos processos produtivos se fizeram sentir, especialmente, a partir de 1990, com o início da abertura da economia aos produtos importados (COUTINHO; FERRAZ, 1994), quando subitamente acirrouse a competição interna em função da entrada de competidores internacionais, aumentado significativamente a concorrência em termos de preços e qualidade dos produtos e serviços ofertados. A principal diferença é que, enquanto a maioria dos países ocidentais vivia esse processo há pelo menos 15 anos, o Brasil foi exposto tardiamente ao contexto de globalização de mercados e de inovações tecnológicas. Como consequência, a distância a percorrer pelas empresas brasileiras, em termos de produtividade e qualidade, tornouse relativamente maior, em relação à de muitos competidores externos.

O certo é que, sob vários aspectos, a III Revolução Industrial se diferencia das anteriores, uma vez que, além do aumento da produtividade no trabalho, isso provocou uma acirrada competição entre as empresas. Nesse cenário, o homem cedeu lugar às máquinas, o aumento do desemprego levou os trabalhadores a melhorarem sua qualificação formal para se tornarem mais facilmente empregáveis e, ao mesmo tempo, surgiram novos postos de trabalho, chamados de precários e/ou informais, como forma de garantir flexibilidade externa às organizações (GARCIA, 2004; HARVEY, 1993).

Se, anteriormente, um tempo longo de permanência na mesma empresa era sinônimo de dedicação, lealdade e compromisso, essa lógica não se aplica aos cenários contemporâneos de downsizing, enxugamento de quadros de pessoal, terceirização e subcontratação, afetando o processo de construção e reconstrução das identidades profissionais (CALDAS, 2000).

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2. 2 A Identidade: conceito e construção

De acordo com Vieira (2007), o interesse dos teóricos da administração pela temática identidade decorre dos estudos sobre cultura corporativa, mais especificamente da tentativa de entender como e por que os indivíduos se vinculam emocionalmente às organizações, assumindo como seus os valores e regras de comportamentos estabelecidos por elas.

A noção de identidade é complexa, pois adquire vários sentidos em diferentes campos teóricos e mesmo entre correntes do mesmo campo, mas, sem dúvida, foi a corrente psicanalítica que formulou um conceito mais consistente e que mais tem influenciado as ciências sociais.

Segundo Dubar (2005), Freud usou o termo pela primeira vez para descrever os motivos de ter sido atraído ao judaísmo, referindose a obscuras forças emocionais e sua relação com o ego, que se tornaram pontos de partida para futuros usos do termo. Conceituar ego e diferenciálo do termo self, não é uma tarefa simples. Recorrendo à psicanálise é possível afirmar que o ego é uma parte do sistema psíquico, cuja função principal é mediar as imposições do mundo interno e as limitações do mundo externo. Portanto, o ego, embora seja parte de um sistema psíquico interno, também tem relações com e se diferencia do externo (BOCK;FURTADO; TEIXEIRA; 1995). O termo self foi introduzido na psicanálise em 1950, por Hartmann (1964), quando ele fazia referência à compreensão que o sujeito tem de si mesmo. Simplificando, é como se, de um lado existisse o ego, e de outro, a própria pessoa, o si mesmo?, o self, tendo como interlocutor o outro?, alguém externo.

De acordo com o psicanalista Erikson (1972, apud DUBAR, 2005), o sentimento de identidade é caracterizado pela percepção do indivíduo quanto à própria unidade, ou seja, das semelhanças consigo mesmo, complementado por um sentimento de continuidade, na medida em que ao longo da vida o ego continuamente realiza sínteses internas das experiências vividas. O autor insiste no...

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