Ordenamento jurídico trabalhista

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas139-188

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I Introdução

Ordenamento jurídico é o complexo de princípios, regras e institutos regulatórios da vida social em determinado Estado ou entidade supranacional1.

É a ordem jurídica imperante em determinado território e vida social.

A jurista Maria Helena Diniz chama de ordenamento o “conjunto de normas emanadas de autoridades competentes vigorantes num dado Estado”2. Para a autora, ordem jurídica, que se trata “do ordenamento jurídico”, constitui o “conjunto de normas estabelecidas pelo poder político competente, que se impõem e regulam a vida social de um dado povo em determinada época”3.

As noções de ordem e ordenamento jurídicos referem-se, como visto, ao complexo unitário de dispositivos regulatórios das organizações e relações sociais em um determinado contexto histórico, geográfico e político-institucional.

O ordenamento jurídico compõe-se de fontes normativas, que são os meios de revelação das normas jurídicas nele imperantes.

II Fontes do direito: conceito e classificação
1. Conceito

O tema relativo às fontes do ordenamento jurídico é um dos mais nobres e fundamentais de todo o Direito. É tema nuclear da Filosofia Jurídica, na medida em que examina as causas e fundamentos remotos e emergentes do fenômeno jurídico. É tema central da Ciência do Direito, na medida em que estuda os meios pelos quais esse fenômeno exterioriza-se. É também tema essencial a qualquer ramo jurídico específico, na medida em que discute as induções que levaram à formação das normas jurídicas em cada um dos ramos enfocados e os mecanismos concretos de exteriorização dessas normas.

No Direito do Trabalho, esse tema é simplesmente decisivo. Não somente em face de todas as razões já expendidas — e que comparecem,

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obviamente, também no ramo justrabalhista — como ainda por comportar um relevante elemento diferenciador desse segmento jurídico especializado perante os demais ramos existentes. De fato, o Direito do Trabalho — ao menos no contexto dos modelos dominantes nos países democráticos centrais — diferencia-se dos outros ramos jurídicos componentes do universo do Direito pela forte presença, em seu interior, de regras provindas de fonte privada, em anteposição ao universo de regras jurídicas oriundas da clássica fonte estatal.

O estudo das fontes justrabalhistas aqui proposto divide-se em três partes distintas. De um lado, a análise do conceito e classificação (tipologia) das fontes do Direito e suas repercussões no ramo jurídico laboral. De outro lado, o exame específico de cada uma das fontes justrabalhistas identificadas na classificação anterior. Finalmente, a reflexão sobre o problema da hierarquia normativa no âmbito do Direito do Trabalho.

A palavra fontes, como se sabe, comporta relativa variedade conceitual. Além da acepção estrita de nascente, o verbete é utilizado no sentido metafórico, traduzindo a ideia de início, princípio, origem, causa. Nesta acepção metafórica, fonte seria “a causa donde provêm efeitos, tanto físicos como morais”4.

A teoria jurídica captou a expressão em seu sentido metafórico. Assim, no plano dessa teoria, fontes do Direito consubstancia a expressão metafórica para designar a origem das normas jurídicas.

2. Classificação

A Ciência do Direito classifica as fontes jurídicas em dois grandes blocos, separados segundo a perspectiva de enfoque do fenômeno das fontes. Trata-se da conhecida tipologia fontes materiais “versus” fontes formais.

Enfocado o momento pré-jurídico (portanto, o momento anterior à existência do fenômeno pleno da regra), a expressão fontes designa os fatores que conduzem à emergência e construção da regra de Direito. Tratase das fontes materiais. Enfocado, porém, o momento tipicamente jurídico (portanto, considerando-se a regra já plenamente construída), a mesma expressão designa os mecanismos exteriores e estilizados pelos quais essas regras se revelam para o mundo exterior. Trata-se das fontes formais.

A) Fontes Materiais — As fontes materiais dividem-se, por sua vez, em distintos blocos, segundo o tipo de fatores que se enfoca no estudo da construção e mudanças do fenômeno jurídico. Pode-se falar, desse modo, em fontes materiais econômicas, sociológicas, políticas e, ainda, filosóficas (ou político-filosóficas), no concerto dos fatores que influenciam a formação e transformação das normas jurídicas.

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Sabe-se que, do ponto de vista histórico, os fatores materiais tendem a atuar conjugadamente, no processo de indução à elaboração ou modificação do fenômeno do Direito; entretanto, mesmo assim, persiste nítida diferenciação entre eles.

As fontes materiais do Direito do Trabalho, sob a perspectiva econômica, estão, regra geral, atadas à existência e evolução do sistema capitalista. Trata-se da Revolução Industrial, no século XVIII, e suas consequências na estruturação e propagação do sistema econômico capitalista; da forma de produção adotada por esse sistema, baseada no modelo chamado grande indústria, em oposição às velhas fórmulas produtivas, tais como o artesanato e a manufatura. Também são importantes fatores que favoreceram o surgimento do ramo justrabalhista a concentração e centralização dos empreendimentos capitalistas, tendência marcante desse sistema econômico-social.

Todos esses fatos provocaram a maciça utilização de força de trabalho, nos moldes empregatícios, potencializando, na economia e sociedade contemporâneas, a categoria central do futuro ramo justrabalhista, a relação de emprego.

As fontes materiais justrabalhistas, sob a perspectiva sociológica, dizem respeito aos distintos processos de agregação de trabalhadores assalariados, em função do sistema econômico, nas empresas, cidades e regiões do mundo ocidental contemporâneo. Esse processo, iniciado no século XVIII, especialmente na Inglaterra, espraiou-se para a Europa Ocidental e norte dos Estados Unidos, logo a seguir, atingindo proporções significativas no transcorrer do século XIX. A crescente urbanização, o estabelecimento de verdadeiras cidades industriais-operárias, a criação de grandes unidades empresariais, todos são fatores sociais de importância na formação do Direito do Trabalho: é que tais fatores iriam favorecer a deflagração e o desenvolvimento de processos incessantes de reuniões, debates, estudos e ações organizativas por parte dos trabalhadores, em busca de formas eficazes de intervenção no sistema econômico circundante.

As fontes materiais justrabalhistas, sob o ponto de vista político — ainda que guardando forte relação com a perspectiva sociológica já examinada —, dizem respeito aos movimentos sociais organizados pelos trabalhadores, de nítido caráter reivindicatório, como o movimento sindical, no plano das empresas e mercado econômico, e os partidos e movimentos políticos operários, reformistas ou de esquerda, atuando mais amplamente no plano da sociedade civil e do Estado. Observe-se, a propósito, que a dinâmica sindical, nas experiências clássicas dos países capitalistas desenvolvidos, emergiu não somente como veículo indutor à elaboração de regras justrabalhistas pelo Estado; atuou, combinadamente a isso, como veículo produtor mesmo de importante espectro do universo jurídico laboral daqueles países (no segmento das chamadas fontes formais autônomas).

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As fontes materiais justrabalhistas, sob o ponto de vista filosófico, correspondem às ideias e correntes de pensamento que, articuladamente entre si ou não, influíram na construção e mudança do Direito do Trabalho. Em um primeiro instante, trata-se daquelas vertentes filosóficas que contribuíram para a derrubada da antiga hegemonia do ideário liberal capitalista, preponderante até a primeira metade do século XIX. Tais ideias antiliberais, de fundo democrático5, propunham a intervenção normativa nos contratos de trabalho, seja através das regras jurídicas produzidas pelo Estado, seja através das produzidas pela negociação coletiva trabalhista, visando atenuar-se o desequilíbrio de poder inerente à relação de emprego. Nesta linha, foram típicas fontes materiais, sob o prisma filosófico, o socialismo, nos séculos XIX e XX, e correntes político-filosóficas afins, como o trabalhismo, o socialismo-cristão, etc.

Além dessas correntes de caráter socialista, trabalhista, social-democrático e congêneres, existem outras linhas de pensamento sistematizado que influenciaram, nos últimos cem anos, a criação ou mudança do Direito do Trabalho. Citem-se, por ilustração, o bysmarkianismo, no final do século XIX, o fascismo-corporativismo, na primeira metade do século XX, e o keynesianismo dos anos de 1930 até fins dos anos de 1970, nos EUA e Europa Ocidental. Finalmente, na direção desconstrutivista do Direito do Trabalho, mencione-se o neoliberalismo, nas últimas décadas do século XX e início do século XXI. Tudo isso sem desprezar-se a crucial dualidade político-filosófica dos tempos modernos, consubstanciada na antítese democraciaversusautocracia.

B) Fontes Formais — Na pesquisa e conceituação das fontes formais, procura-se o fenômeno de exteriorização final das...

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