Ordenamento Jurídico

AutorAmauri Mascaro Nascimento/Sonia Mascaro Nascimento
Páginas92-117

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1. Conceito de ordenamento jurídico

Compreender o direito exclusivamente como norma é insuficiente, daí a maior amplitude da sua visão como ordenamento jurídico que abrange não apenas as normas jurídicas, mas também as instituições, as relações entre as normas consideradas como um conjunto — que não são unicamente estatais, como também elaboradas pelos grupos sociais, especialmente as organizações sindicais —, os princípios e outros aspectos.

A concepção do direito como ordenamento foi desenvolvida por Santi Romano (1918), cujos estudos exerceram grande influência na doutrina. Para o jurista italiano, a expressão “direito”, no sentido objetivo, significa um ordenamento na sua completude e unidade, isto é, uma instituição e um preceito ou complexo de preceitos, sejam normas ou disposições particulares, diversamente reagrupadas ou sistematizadas, de caráter jurídico.

Acrescentaram-se os estudos de Bobbio (1960), para quem, para que exista direito, é necessário que haja um completo sistema de normas, e estas não podem ser consideradas isoladamente, uma vez que cada norma se torna eficaz a partir de uma complexa organização, que é produto de um ordenamento jurídico.

O ordenamento jurídico, como todo sistema normativo, é um conjunto de normas. Existe, na vida dos homens, um só ou diversos tipos de ordenamentos? A unidade do ordenamento permite a pluralidade das fontes que o produzem? O ordenamento jurídico, além de uma unidade que se forma na pluralidade de fontes, é um sistema? Sistema é uma totalidade ordenada, um conjunto coerente?

Se dúvida pudesse subsistir sobre a pluralidade dos ordenamentos, ficaria afastada com o direito do trabalho. Dá-se o nome de pluralismo jurídico à concepção segundo a qual não há um só ordenamento jurídico, o estatal, mas, coerentemente com este, outros ordenamentos não estatais. Bobbio mostra, corretamente, que há ordenamentos acima do Estado, como o internacional e, segundo algumas teorias, o da Igreja Católica; ordenamentos abaixo do Estado, como os propriamente sociais que o Estado reconhece, limitando-os ou absorvendo-os; ordenamentos ao

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lado do Estado, como o já citado da Igreja Católica, segundo outras concepções; e ordenamentos contra o Estado, como os grupos de criminosos.

O direito do trabalho situa-se como um ordenamento abaixo do Estado, pelo Estado reconhecido ou, até mesmo, absorvido, com características próprias, pondo-se como ordenamento, relacionado com o do Estado com o qual se coordena ou ao qual se subordina, específico das normas, instituições e relações jurídicas individuais e coletivas de natureza trabalhista.

2. Sistemas de relações de trabalho

A — CLASSIFICAÇÃO. Há mais de um ângulo de classificação dos sistemas de relações de trabalho, alterando-se de acordo com o critério adotado, dentre outros os critérios político-econômicos e os jurídico-normativos; o primeiro partindo da concepção política que preside o sistema; e o segundo, das fontes formais e das normas jurídicas trabalhistas.

B — CONCEPÇÕES POLÍTICO-ECONÔMICAS. Quanto à concepção político-econômica segundo a qual o sistema de relações de trabalho foi concebido, é possível assinalar o sistema corporati-vista da Itália fascista, Espanha, Portugal e Brasil, hoje abandonado pelos países que o adotaram e tendo como característica básica a intervenção do Estado na ordem econômica e social, o que leva à construção de um ordenamento jurídico repleto de leis e outros atos do Estado e visando a disciplinar o direito do trabalho no sentido de evitar luta de classes e promover a integração entre o capital e o trabalho.

Inclua-se, também, o sistema socialista do leste europeu, alterado pelas transformações na URSS, que preconizava a propriedade estatal dos bens de produção, a destruição da propriedade privada, a função ideológica dos sindicatos, tudo segundo uma ditadura do proletariado, resultando um direito do trabalho também a exemplo do corporativismo estatal, supressivo da liberdade sindical, diferindo as suas bases econômicas quanto à concepção de propriedade, mas não os direitos dos trabalhadores em si.

Há, também, sistemas neoliberalistas de relações de trabalho, caracterizados pela redução do papel do Estado, o que gera menos leis, plena liberdade sindical, autonomia das negociações coletivas, cujo resultado é a pactuação de contratos coletivos, a utilização de formas privadas de composição dos conflitos, como a mediação e a arbitragem, sistemas que são aceitos, na atuali-dade, com os acontecimentos do leste europeu, como uma concepção em ascensão, na economia social de mercado da Europa, por exemplo, como já existia nos Estados Unidos.

C — CONCEPÇÕES JURÍDICAS. Partem das normas jurídicas do ordenamento e dos diferentes aspectos que apresentam, como a dimensão maior ou menor do espaço ocupado pela lei e pelos contratos coletivos, a predominância de um ramo do direito do trabalho e a maior ou menor liberdade sindical.

Quanto à dimensão das normas jurídicas e suas fontes, há sistemas regulamentados e sistemas desregulamentados, mera questão de predominância, uma vez que seria impossível um grupo social sem normas jurídicas e éticas, de organização e comportamento das pessoas, assim, também, nas relações de trabalho. Desregulamentação do direito do trabalho quer dizer

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menos leis, especialmente de direito coletivo e sindical, para que o ordenamento jurídico possa ser basicamente negociado, preenchido por contratos coletivos, com menor espaço para as leis elaboradas pelo Estado. Nos Estados Unidos da América, há poucas leis trabalhistas e as normas e condições de trabalho são previstas em contratos coletivos de trabalho, a maioria em nível de empresa. No Uruguai, não há leis de organização sindical, de negociação coletiva e de greve. Nesse mesmo sentido, é que se fala, também, em sistemas autônomos e heterônomos para designar os sistemas desregulamentados de formação espontânea pelos próprios interlocutores sociais, que estabelecem os seus enlaces jurídicos, e sistemas legislados, nos quais o Estado encarrega-se de formar o ordenamento jurídico. Claro que todo ordenamento jurídico trabalhista é misto, com os dois tipos de normas, tudo como foi dito, resumindo-se a uma questão de prioridade e que se relaciona muito com a cultura jurídica e política do país.

Há sistemas de plena liberdade sindical, com base nos princípios da Convenção n. 87 da Organização Internacional do Trabalho, sobre criação livre de sindicatos, independentemente de autorização do Estado, como nas democracias, das quais a liberdade sindical é um componente. Outros sofrem a atuação do Estado sobre os sindicatos, como no regime de exceção do Peru, de Cuba etc.

Quanto ao ramo do direito do trabalho que tem maior amplitude, há sistemas de direito coletivo, como em alguns países da Europa, cujas Constituições os respaldam de modo amplo, caso da Itália atual, e da Espanha, incluindo-se, também, os Estados Unidos da América. Em outros países, predomina o direito individual por obra do Estado, como no Brasil até 1988.

D — O PLURALISMO DO DIREITO DO TRABALHO. Há duas concepções jurídicas diferentes do direito: o monismo jurídico (KELSEN), que confunde direito e Estado, de modo que todo o direito é produzido pelo Estado, e o pluralismo jurídico (DEL VECCHIO), segundo o qual nem todo direito é elaborado pelo Estado, coexistindo, ao lado do direito estatal, um conjunto de normas jurídicas criadas pelos particulares entre si, toleradas pelo Estado, daí resultando um ordenamento misto, com normas estatais e não estatais. O direito do trabalho é expressão do pluralismo jurídico. Combinam-se as leis promulgadas pelo Estado e os contratos coletivos pactuados entre os sindicatos e as entidades patronais. Há um direito estatal e um direito profissional, convivendo, formando um complexo de normas jurídicas que se combinam segundo uma hierarquia própria de aplicação, basicamente apoiada no princípio da prevalência da norma que resultar em maiores benefícios para o trabalhador, expressando-se como o princípio da norma favorável, salvo exceções.

3. O estado e as leis

A — LEIS CONSTITUCIONAIS. Há países que incluíram normas e princípios de direito do trabalho em suas Constituições, em maioria, enquanto outros não, daí resultando a classificação das Constituições em prescritivas, subdivididas em amplas (México, Portugal e Brasil) e restritas (Japão, Itália e Espanha), conforme o espaço maior ou menor assegurado ao direito do trabalho, e Constituições omissivas, que nada dispõem sobre direito do trabalho (EUA).

Uma das leis constitucionais é a de 1947, da Itália, que dedica um capítulo às relações econômicas. A Constituição da Iugoslávia (1974) incluiu normas de direito do trabalho no preâmbulo,

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entre os princípios fundamentais, além de dispor, no seu corpo, sobre diversos direitos sociais e autogestão. A Constituição do México (1917) foi a primeira a enumerar garantias trabalhistas. A Constituição de Weimar (1919) foi a segunda e conseguiu influenciar diversas outras. A Constituição de Portugal, aprovada em 1976, contém normas sobre direitos e deveres econômicos, inclusive sobre as obrigações do Estado quanto ao direito do trabalho (art. 52) e os direitos fundamentais dos trabalhadores (art. 53). A Constituição da Venezuela (1961) tem normas sobre direitos sociais (art. 72). A Constituição da Espanha (1978) tem algumas normas trabalhistas.

Contêm garantias aos trabalhadores também as Constituições da República Federal da Alemanha (1949), da Argentina (1953), do Chile (1981), da República Popular da China (1982), de Cuba (1976), da França (1958), do Japão (1946), do México (1917), do...

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