Democracia Econômica, o Estado e a Crise Financeira Mundial

AutorGabriel Real Ferrer/Paulo Márcio Cruz
CargoDoutor em Direito Universidade de Alicante, Docente da Universite de Limoges, na França, da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), e da Universidad Autônoma Metropolitana do México/Pós-Doutor em Direito do Estado -Universidade de Alicante, na Espanha
Páginas55-63

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1 A(s) Crise(s) -Considerações Introdutórias

Enquanto este artigo é escrito o mundo do capitalismo globalizado é sacudido pela maior crise financeira da história, fato que merece profunda reflexão. É, provavelmente, mais uma comprovação dos riscos apontados por Ulrich Beck1. Como o espaço público transnacional ainda está em fase de construção teórica, as nações assistem perplexas à derrocada do grande cassino global montado pelos Estados Unidos. Os países da Europa, que se "esbaldaram jogando nesse cassino", afundam junto com a pretensa credibilidade e solidez do sistema financeiro norte-americano.

Os Estados Unidos e o mundo certamente sairão diferentes dessa crise, até em termos ideológicos, e adotarão mecanismos mais rígidos de controle financeiro. Não obstante, essas necessárias transformações provavelmente não abordarão de maneira consistente o problema, caso se limitem a incorporar mecanismos que pretendam dotar de maior segurança, o sistema e seus operadores e esquecendo, que em sua raiz, se encontra um modo de entender as relações econômicas, baseadas exclusivamente no interesse individual, alimentando um desaforado afã de lucro e ignorando totalmente o interesse da maioria2.

Ainda que o "tsunami" financeiro, de modo imediato, haja afetado diretamente bom número de operadores econômicos que basearam sua atividade e expectativas de benefício em movimentos especulativos, é certo que tal "onda" está atingindo setores essenciais da economia real. O que alterou de maneira muito negativa o modo de vida e a possibilidade de desenvolvimento pessoal e social de centenas de milhões de pessoas no planeta. Entre outros efeitos, a crise financeira pode implicar 20 milhões de pessoas desempregadas em todo o mundo até o final de 2009, conforme afirmou o diretor geral da OIT (Organização Internacional do Trabalho), Juan

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Somavía, em entrevista coletiva à imprensa.

Segundo as estimativas da OIT apresentadas por Somavía, o número de desempregados poderá subir de 190 milhões em 2007 para 210 milhões no final de 2009, aumentando se a crise se agravar3. Não há, portanto, como não discutir com profundidade teórica essa crise, especialmente no âmbito do Direito e da Teoria do Estado e, em geral, do Direito Público. Pois, essa é a perspectiva que permitirá que os interesses gerais estejam presentes na nova ordem a ser construída.

O mundo acadêmico foi incapaz de prever essa crise e deve discuti-la na medida de sua gravidade. Ainda que seja idéia que aparece de modo recorrente quando se discute problemas globais4, nunca esteve tão evidente a necessidade de criar um espaço regulatório transnacional. No que compete mais especificamente à problemática em discussão, um Estado que submeta o capital ao interesse da maioria dos habitantes do planeta.

A fim de lançar luz sobre esse impasse, a possibilidade de republicanização da globalização (CRUZ, 2008) deve ser questão central do grande debate que se avizinha e, portanto, um começo de discussão. Mas é o papel da Democracia o assunto que melhor representa as consequências possíveis para essa crise que transformou as bolsas de valores em "pesadelos" diários para as instituições financeiras e boa parte dos habitantes do planeta.

Assim, as principais perguntas que o presente artigo pretende responder são: como será e que papel terá a Democracia Econômica no século XXI (CRUZ; CHOFRE SIRVENT, 2006), já que esta é uma das formas teóricas de Capitalismo Democrático? Adianta-se que os requisitos que podem satisfazer um projeto de democratização das relações econômicas são de dois matizes:

  1. Apresentar um "desenho global" da capacidade de persuadir aquelas pessoas que reconheçam valor nas políticas de inovação (de identidade e de solidariedade); e

  2. Prever benefícios materiais que os indivíduos possam perceber imediatamente ou calculá-los com facilidade (incentivos materiais e individuais).

Os programas de Democracia Econômica podem, então, desenvolver a dupla função de mobilizar as paixões e os interesses - os dois matizes. Neste sentido, é importante a investigação de Nuti (1991), que parte da hipótese de que as diferentes acepções de Democracia Econômica - correção do funcionamento espontâneo do mercado através de políticas de intervenção do Poder Público a partir da constituição de instituições regulatórias de Governo Transnacional e valorização de diferentes âmbitos de Democracia Micro-Econômica - não são alternativas, mas instrumentos complementares à Democracia como valor. As pesquisas do autor italiano concluem que o processo de Democracia

Econômica se desenvolve através da pluralidade de dimensões, que vão do econômico, passando pelo social e chegando ao fundamental fator ambiental.

Além de Nuti (1991), outros autores apontam, de modo geral, que a Democracia Econômica pode ser associada a algumas dimensões. Uma delas está relacionada à "superação dos modelos de industrialismo". Segundo esta visão, os programas de Democracia Econômica terão dificuldades para alcançar êxito se não forem abertos à maioria dos trabalhadores e cidadãos. Considerando-se o modelo social-democrata sueco, que funciona como uma espécie de paradigma, a Democracia Econômica deve ser considerada a terceira etapa no desenvolvimento da Democracia e deverá assinalar a evolução desde as democracias política e social (que já estão razoavelmente discutidas, mas não implantadas, principalmente nos países ditos emergentes, como o Brasil) até a Democracia Econômica. A questão está ligada a todas as tentativas para ampliar e qualificar a cidadania5. Certamente que um novo modelo de Poder Público, superados os conceitos clássicos de Soberania, Divisão de Poderes e Democracia Representativa, constituirá fundamental meio de cultura para os projetos de Democracia Econômica.

Já a outra dimensão está vinculada às reformas e funcionamento das relações industriais. O processo, muito provavelmente, será multidisciplinar, e aqui, no caso, economistas e administradores públicos e privados devem estar convencidos da premência da mudança, até para a própria sobrevivência da espécie humana. Na maioria dos países, existe crise crônica e desorientadora dos modelos clássicos do pluralismo e do neo-corporativismo. As relações empresariais mais eficazes são aquelas que combinam bom grau de concentração com margens de descentralização, de regulação rigorosa com elementos de flexibilidade. O rol de empresas interessadas só poderá se consolidar se estiverem presentes propostas de aumento de qualidade e a participação nos seus resultados e nas suas funções de coordenação e administração (CARRIERI, 1998, p. 21).

É necessário aprofundar-se nas propostas de reforma dos fundamentos do Capitalismo. Caso não seja controlado pela sociedade, qualquer tipo de tentativa de desenvolvimento de modelos de Poder Público Transnacional será efêmero e infrutífero. E o único modo talvez de convencer os centros de comando capitalistas é demonstrar que o futuro da humanidade e o do próprio capitalismo depende dessa mudança de concepção, fazendo convergir Democracia, lucro e interesse social transnacional para o bem comum.

Colocar esse tipo de questão pouco tempo depois de derrubado o mundo comunista pode soar como provocação ou um convite duvidoso à predição. Mas, mesmo que ninguém duvide que a queda do Muro de Berlin tenha marcado o final

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de uma época, deve-se precisar qual a época que terminou para se poder medir o verdadeiro alcance deste acontecimento e suas repercussões.

Os otimistas defendem que a época terminada começou em 1945. Em nome do combate pela Democracia, havia-se derrotado Hitler. E, não se pode esquecer, a derrota só se deu com a ajuda de Stalin, que cobrou uma conta bastante alta por isso: a servidão de metade da Europa ao comunismo. Quarenta e cinco anos mais tarde a vitória foi completa. Parece que foi ganha a batalha das ideias.

Quem hoje recorre a Lênin para questionar Montesquieu?

Isso passou a ser coisa do passado, pois a evolução das ideias políticas havia alcançado sua última fase, e a República Liberal, herdeira do século XVIII e da filosofia ilustrada, representaria a forma mais perfeita de organização humana. A liberdade burguesa havia triunfado e se estaria perto do fim da história, se é verdade que a história, apesar de tudo, é a batalha das ideias. Francis Fukuyama e seu The end of history and the last man parecia ter razão (FUKUYAMA, 2005).

Os pessimistas denunciaram essa interpretação, que julgaram simplista e ingênua. O período que termina não começou em 1945, mas em 1917. O parêntesis ideológico da revolução bolchevique estava encerrado e não se estaria assistindo ao final da história, mas sim ao retorno das nações. Nossa triunfante modernidade estaria ameaçada por um retrocesso histórico. Estar-se-ia obcecado pelo século XIX.

Sobre o conhecimento que se tem sobre essa interposição de épocas, esse artigo enseja uma hipótese muito mais ampla. O ano de 1989 não encerra uma época iniciada em 1917 ou em 1945. Graças a 17896, 1989 encerra o que se institucionalizou: a era do Estado Constitucional Moderno Soberano e endógeno. A era da modernidade político-jurídica caracterizada pela "justificação do político". Logo, o problema passou a ser que o âmbito do "político" transbordou inquestionavelmente dos estreitos limites do Estado Constitucional Moderno, mudando radicalmente.

Assim, depois de realizada revisão histórica de alterações político-econômicas, tornou-se inevitável verificar a obsolescência das instituições modernas e descobrir que, entre a era em que estamos entrando e as construções da Era das Luzes há mais diferenças do que entre esta e a era patrimonial que a havia precedido. Todavia, ainda será muito difícil admitir o esgotamento do Estado Constitucional Moderno, assim como será difícil...

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