O conceito de autonomia financeira e a obrigatoriedade no exercício das competências tributárias

AutorCarlos Augusto Daniel Neto
CargoBacharel em Direito pela Universidade do Piauí. Advogado tributarista
Páginas130-140

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Introdução

O objeto deste trabalho é a análise e crítica da cediça afirmação doutrinária quanto à facultatividade do exercício das competências tributárias, tão mansamente repousada na robusta dogmática jurídica brasileira, a partir de uma perspectiva integrativa entre dois subsistemas constitucionais, tributário e financeiro, e da necessária preservação da forma federativa do Estado Brasileiro, protegido por pétrea disposição.

Para tal mister será essencial uma exposição, tão prévia quanto breve, do federalismo brasileiro e do papel da autonomia financeira dos entes federados dentro desse sistema rígido de distribuição de competências tributárias e prescrições quanto à repartição das receitas advindas do exercício das mesmas, que a Constituição Federal impõe.

Ato contínuo, abordar-se-á a questão da facultatividade do exercício da competência tributária diante do papel exercido pelas rendas tributárias de um ente federado no orçamento público dos outros, e se tal participação é imperativa ao ponto de tornar a atividade legislativa tributária uma obrigação, com todas as suas implicações, dentro do sistema federativo pátrio.

Não que se esteja olvidando a preciosa lição de Alfredo Augusto Becker, de que o Direito Tributário - colocação aplicável a qualquer ramo da ciência jurídica - requer uma "atitude mental jurídica" (cf. Becker, 2007, p. 15). Ainda que se opere um corte sobre a realidade fenomenológica ("fato puro", no dizer de Lourival Vilanova) é essencial observar a comunicação necessária dos subsistemas, que através de infiuências recíprocas se restringem e se condicionam.

Não se propõe uma confusão entre o Direito e Ciência das Finanças, que acaba por promover a "demolição da juridicidade do Direito Tributário e gestando um ser híbrido e teratológico: o Direito Tributário invertebrado" (Becker, apud Carvalho, 2010), mas pretende-se operar uma interpretação sistemática das normas de competência

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tributária em relação às normas de direito constitucional-financeiro relativas à repartição da receita tributária.

Sobretudo, o objetivo deste artigo é demonstrar que toda cogitação sobre os tributos necessariamente evoca o contraponto da despesa pública, sem a qual o tributo perde sua justificativa mais profunda, de modo que uma teoria das competências tributárias deve ser elaborada coordenadamente a uma teoria do Estado e dos gastos públicos, como requisito para a compreensão do fenômeno financeiro em sua integridade (cf. Sainz de Bujanda, p. 116).

1. O papel da autonomia financeira na federação brasileira

Por fugir do objeto de investigação, socorre-se à incorrigível definição de federação, presente nas lições do mestre Geraldo Ataliba, ao dizer que é "a autonomia recíproca da União e dos Estados, sob a égide da Constituição Federal. Esta, por sua vez, é concomitantemente, o pacto (foedus, foederis) de união, de associação entre os Estados e a constituição de pessoa com quem eles se não confunde" (Ataliba, 1968, p. XIII).

O caráter federal do Estado Brasileiro está insculpido em seu art. 1º,1que prescreve a união indissolúvel entre Estados, Municípios e o Distrito Federal, onde se distinguirão (cf. Carrazza, 2011, p. 152) em uma ordem jurídica global (Estado Brasileiro) e as ordens jurídicas parciais, central (União) e periféricas (Estados-membros, Municípios2 e Distrito Federal). Apesar da terminologia central-periférica adotada, deve-se frisar que a federação implica igualdade jurídica entre os componentes dessas diversas ordens parciais, derivada da autonomia recíproca assinalada por Ataliba.

Analisando a amplitude desta igualdade jurídica entre as ordens estatais, observa-se que é marcada por uma autonomia (não absoluta, típica da ordem global, mas relativa), veiculada através da repartição de competências as mais diversas entre a União e as ordens periféricas, realizada pela Constituição Federal, instrumento superior a todas as ordens jurídicas parciais e que a todas submete.

Pertinente, pois, a argúcia de Victor Nunes Leal, ao apontar como três características típicas da Federação a 1) rigidez na Constituição (podendo ser tanto absoluta como relativa), 2) a partilha constitucional das competências, e 3) a existência de um poder supremo para resolução de confiitos sobre a aplicação das disposições constitucionais (cf. Leal, 1960, pp. 110-111).

Retomando a questão da autonomia, lapidar é a lição de Antônio de Sampaio Dória, ao dizer que "na técnica do direito público moderno, pode ser tida, em sentido amplo, como a faculdade reconhecida a uma coletividade pública subordinada, de organizar, dentro de certos limites, o seu governo, para a administração do que respeite aos seus peculiares interesses" (Dória, 1963, p. 9), demonstrando que ela se manifesta política, administrativa e judicialmente, e de grande importância para o Direito Tributário, financeiramente.

Deve-se esmerar análise na autonomia financeira do ente federado.

Mais uma vez, debruçou-se proficientemente sobre o assunto Geraldo Ataliba, explanando que a autonomia política supõe, como condição, a financeira, só podendo se considerar realmente autônomo o governo

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que possa contar com fontes próprias de receita e suficientes ao cumprimento de seus desígnios próprios, e para tal mister elege como essencial a rígida distribuição de competências tributárias na Constituição (Ataliba, 1968, pp. 24-25).

Em que pese à concordância com a primeira parte das colocações do mestre, discorda-se quanto à necessidade da rígida distribuição de competências para a garantia da autonomia financeira. Entende-se, junto com Antônio R. Sampaio Dória (cf. Dória, 1972, p. 15) e Luís Eduardo Schoueri (cf. Schoueri, 1998, p. 83) que a forma federativa assegura a autonomia financeira das pessoas políticas de direito público, ainda que seja integralmente através da previsão constitucional de repasses da União. Mas, optando o legislador constituinte pela via da repartição de competências tributárias, a discordância torna-se descompassada com a realidade que o Direito Brasileiro refere, por isso não se vai prolongar a discussão.

O importante é fixar que a autonomia financeira do ente federado está estritamente ligada à capacidade de adquirir receita, independentemente da vontade dos outros entes, para a manutenção de seus desígnios próprios, delimitados constitucionalmente.

2. O tributo dentro do quadro de receitas do Estado

O tributo apresenta-se como uma das categorias de ingresso público. A classificação que goza de maior prestígio é a que separa a receita derivada - ou de direito público - da receita originária - de direito privado (cf. Torres, 2007, p. 16), havendo relativo consenso no direito comparado. Exceções notáveis são a de Benedetto Cocivera, que as divide em entradas tributárias e não tributárias (cf. Cocivera, 1965, p. 133), e a da doutrina alemã, que separa entre Abgaben - sentido geral de ingresso público - e Geldabgaben - no sentido de prestação pecuniária decorrente de tributo (cf. Kruse, 1991, p. 225, e Hensel, 2005, p. 83).

A receita e a despesa compõem, digamos assim, um pressuposto do conhecimento do tributo, pois não há como, dentro de um Estado Democrático Fiscal, olvidar dessa análise integrada do Direito Tributário e Financeiro. E isso se refiete, sobretudo, no próprio conceito de tributo, que sobreleva a destinação às necessidades essenciais desse Estado que lhe impõe (cf. Torres, 2007, p. 35).

De fato, a doutrina ocupou-se em definir o conceito de tributo envolvendo a relação de receita-despesa, como na construção de Ferreiro Lapatza, "uma obrigação, estabelecida por Lei, de dar uma importância em dinheiro, de acordo com o princípio da capacidade, em favor de um ente público para sustentar seus gastos" (Lapatza, 2007, p. 141), e em especial na Alemanha, onde Klaus Tipke observa que a primeira limitação ao poder de tributar é o próprio conceito de tributo (cf. Tipke, 2008, p. 89), apontando que o Bundesverfassungsgericht (Corte Constitucional Alemã) recepcionou o conceito de tributo do § 1º do Reichabgabenordnung (RAO) de 1919, da lavra de Otto Mayer, sendo depois positivado no § 3º, I, do Abgabenordnung (AO) de 1977, onde define imposto como "(1) Steuern sind Geld-leistungen, die nicht eine Gegenleistung für eine besondere Leistung darstellen und von einem öffentlich-rechtlichen Gemeinwesen zur Erzielung von Einnahmen allen auferlegt werden, bei denen der Tatbestand zutrifft, an den das Gesetz die Leistungspfiicht knüpft; die Erzielung von Einnahmen kann Nebenzweck sein".3E no KAG-NW,4§ 4º, II, define taxa como "(2) Gebühren sind Geldleistungen, die als Gegenleistung für eine besondere Leistung - Amtshandlung oder sonstige Tätigkeit - der Verwaltung (Verwaltungsgebühren)

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oder für die Inanspruchnahme öffentlicher Einrichtungen und Anlagen (Benutzungsgebühren) erhoben werden".5As definições apontadas pelo tributarista alemão evidenciam a forte infiuência que o direito tributário alemão teve sobre os ordenamentos europeus e do além-mar, especialmente no Brasil, pela definição prescrita pelo Código Tributário Brasileiro, com o acréscimo do exercício de poder de polícia como materialidade das taxas.

Mais do que a dogmática, a estatística sufraga nossa posição. Conforme levantamento realizado pelo Deputado Federal Júlio César, mais de um terço da receita para fazer frente aos orçamentos dos Estados foi decorrente de repasses constitucionais da União, derivados da arrecadação tributária, e nos Municípios os repasses são ainda mais significativos (cf. Lima, 2012, pp. 51-63).

São valores altos o suficiente para que se possa afirmar veementemente que o tributo tem de ser analisado dentro da equação financeira composta pelas despesas que lhe são correspectivas...

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