A nova lei dos motoristas profissionais: a dificuldade de ponderar interesses de patrões, empregados, passageiros e usuários das estradas Brasileiras

AutorAugusto César Leite de Carvalho
Páginas390-401

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Ensaio redigido como tributo singelo à sensibilidade, erudição e desassombro acadêmico da jovem professora Gabriela Neves Delgado, capaz de induzir nós outros, mais velhos e esforçados exegetas do direito do trabalho, à compreensão de que é preciso continuar caminhando. A utopia, diria Eduardo Galeano, insiste em esperar-nos no horizonte, incitando-nos a caminhar.

1. A questão social nas estradas e a intervenção estatal

A partir da edição da Lei n. 12.619, em 2012, sucederam paralisações nas estradas brasileiras em que caminhões interrompiam o tráfego como protesto pelas inovações trazidas com aquela nova regência do trabalho nas estradas brasileiras. Apesar da aparente dificuldade de atender à exigência de intervalos de trinta minutos a cada quatro horas de viagem, em rodovias inseguras e desprovidas de pontos de apoio à sua margem, às vezes carecendo até de acostamento, causou estranheza a reação de supostos empregados contra uma norma que tentava reverter a precariedade de um serviço movido, não raro, pelo efeito de substâncias químicas psicoativas que retardam o sono e provocam acidentes em massa.

A imprensa não tardou a revelar que aquela inusitada mobilização - ou melhor, estagnação - nas estradas era obra de trabalhadores autônomos e sobretudo de empregadores incomodados com o ônus financeiro que a nova lei gerava. Logo nas primeiras tentativas de alterar as novas regras por meio de projetos de lei, noticiou-se a atuação suspeita de membro do Parlamento brasileiro que estaria confessadamente a remunerar trabalhadores terceirizados da Câmara de Deputados para provocar tumulto nas galerias daquela casa legislativa, com vistas a simular uma insurreição das bases obreiras contra a Lei n. 12.619/20121.

A realidade vivida nas estradas brasileiras reclamava, e segue a reclamar, alguma medida de impacto: na última década, acidentes com veículos de carga ocuparam o segundo lugar numa tabela demonstrativa de veículos acidentados nas rodovias federais, enquanto acidentes ocasionados por motoristas de transportes coletivos chegaram a registrar um quantitativo de 10.185 por ano2. As estatísticas ainda são mais alarmantes se considerado que cerca de metade dos acidentes típicos ou de doenças relacionadas ao trabalho rodoviário não é informada ao INSS por meio de CAT, ou Comunicação de Acidente de Trabalho3.

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Talvez pela revelação midiática dos verdadeiros interesses contrários à Lei n. 12.619/2012, sobreviveu essa lei por cerca de três anos até a superveniência, em início de março de 2015 e depois de nova interrupção das estradas em vários estados da Federação, com ameaça de grave crise de abastecimento em todo o mercado, da sanção de novo estatuto legal, a Lei n. 13.103/2015. Tinha sentido, nessa conjuntura, a premonição do procurador do trabalho Paulo Douglas Almeida de Moraes:

Após a vigência da lei, os fatos sociais que se sucederam demonstram que a Lei 12.619/12 pode não passar de uma vã promessa de garantia da dignidade ao motorista profissional, pois o governo brasileiro vem se mostrando sensível às pressões exercidas por certos grupos interessados em manter tudo como sempre esteve. Tal fato é comprovado pela infeliz Resolução n. 417 so CONTRAN, que de modo flagrantemente ilegal e abusivo veio subtrair fortemente o caráter coercitivo da lei.4

A sanção, sem vetos, da Lei n. 13.103/2015, deu-se como ação reativa de um governo que não escondeu o anseio de ver restabelecido o trânsito normal das estradas. Não é de estranhar o fato de as redes sociais revelarem que a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Terrestres (CNTT), quatro centrais sindicais e vários sindicatos terem anunciado nota de repúdio contra a sanção presidencial e a deliberação de proporem ação direta de inconstitucionalidade contra a nova lei5.

Importa investigar, portanto, e com espectro contextual, quais são as novas regras, advindas com a Lei n. 13.103, de 2015, e a sua real contribuição na ingente necessidade de ponderar três interesses normalmente conflitantes: o interesse econômico dos empregadores, o interesse dos motoristas empregados e seus ajudantes em uma condição digna de trabalho e, no terceiro vértice, o interesse de toda a sociedade em ser provida de estradas seguras, onde as colisões, mutilações e mortes não sejam um evento previsível, talvez provável, mas sim um mero e inusitado acidente.

Em verdade, a única coletividade atendida pela nova lei foi a que estava a reclamar o sacrifício da segurança e saúde de motoristas e usuários de estradas em proveito de eficiência e renda maiores nos serviços rodoviários. Não há mudança, entre os textos das leis de 2012 e de 2015, que retomem o argumento da paz, segurança e tranquilidade nas rodovias brasileiras. Nesse âmbito, fundou-se como postulado jurídico, assim e conscientemente, o primado da eficiência e rentabilidade.

O retrocesso na proteção da saúde e segurança de motoristas, estradas e seus usuários pode sentir-se, por exemplo, quando se percebe que os motoristas agora podem ser remunerados em função da distância percorrida, do tempo de viagem ou da quantidade de produtos transportados (art. 235-G da CLT, alterado pela Lei n. 13.103), ao contrário do que expressamente previa a Lei n. 12.619, de 20126, ou seja, os rodoviários voltam à contingência de imprimir maior veloci-dade e de transportar cargas mais pesadas para auferir maior remuneração e, certamente, não deixarão de fazê-lo para preservar a pavimentação e a segurança das rodovias.

2. O novo regime do trabalho rodoviário

Olhando em retrospectiva, a Lei n. 12.619, de 2012, não havia alterado a jornada dos trabalhadores rodoviários, que continuava sendo de oito horas, com intervalo entre jornadas de onze horas e trinta e cinco horas de descanso semanal7.

Mas as alterações que vieram com a Lei n. 13.103, de 2 de março de 2015, foram muito significativas.

2.1. A jornada dos motoristas

A carga horária dos motoristas foi elastecida pela Lei n. 13.103/2015 até um limite incomum a outras categorias profissionais, como se o tempo maior ou excessivo de viagem não fosse um fator de estímulo ou induzimento a acidentes de trânsito. O § 13 do art. 235-C, igualmente trazido com a Lei n. 13.013/2015, esclarece que "salvo previsão contratual, a jornada de trabalho do motorista empregado não tem horário fixo de início, de final ou de intervalos" - a pretexto de assegurar-se autonomia ao trabalhador rodoviário, permite-se ao empregador alterar constantemente os horários de trabalho. E desapareceu a exigência de negociação coletiva para a compensação de jornadas, contida no art. 235-C, § 6º, da CLT8 ao tempo em que vigia a Lei n. 12.619/2012.

A Lei n. 13.103, de 2015, inseriu ainda alguns preceitos ambíguos na CLT, como fez ao acrescentar ao art. 235-D, que regula o repouso semanal dos motoristas, o § 8º: "Para o transporte de cargas vivas, perecíveis e especiais em longa distância ou em território estrangeiro poderão ser aplicadas regras conforme a especificidade da operação de transporte realizada, cujas condições de trabalho serão fixadas em convenção ou acordo coletivo de modo a assegurar as adequadas condições de viagem e entrega ao destino final." É certo que as normas coletivas, sempre alvissareiras na inovação de regras necessárias à definição de rotinas imperceptíveis aos olhos do

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legislador ordinário, não poderão, contudo, reduzir ou suprimir direitos trabalhistas absolutamente indisponíveis, sob pena de terem as suas cláusulas questionadas e virtualmente anuladas mediante ação judicial.

Ao fim e ao cabo, o texto da CLT, por obra da Lei n. 13.103, de 2015, teve acrescido, entre outros, o art. 235-C, com o seguinte teor9:

Art. 235-C. A jornada diária de trabalho do motorista profissional será de 8 (oito) horas, admitindo-se a sua prorrogação por até 2 (duas) horas extraordinárias ou, mediante previsão em convenção ou acordo coletivo, por até 4 (quatro) horas extraordinárias.

§ 1º Será considerado como trabalho efetivo o tempo em que o motorista empregado estiver à disposição do empregador, excluídos os intervalos para refeição, repouso e descanso e o tempo de espera.

[...]

§ 5º As horas consideradas extraordinárias serão pagas com o acréscimo estabelecido na Constituição Federal ou compensadas na forma do § 2º do art. 59 desta Consolidação.

[...]

§ 16 Aplicam-se as disposições deste artigo ao ajudante empregado nas operações em que acompanhe o motorista.

Seguindo tendência doutrinária e jurisprudencial normalmente alusiva a outras categorias com trabalho menos penoso, o art. 235-F da CLT autoriza, também para o motorista profissional, o regime de doze horas de trabalho por trinta e seis horas de descanso, desde que esse regime de trabalho seja permitido em convenção ou acordo coletivo. Transfere-se para o sindicato que representa os trabalhadores rodoviários a responsabilidade de aceitar, ou não, cláusula normativa de tal jaez.

Ao comentar a redação do art. 235-F da CLT sob a vigência da Lei n. 12.619/2012 (que já permitia o regime 12 x 36 sob...

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