Notas para uma teoria hermenêutico-jurídica

AutorWillis Santiago Guerra Filho
CargoUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Universidades Candido Mendes (UCAM). Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Páginas23-29

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1 Generalidades

A etimologia da palavra "interpretação", de origem latina, remeteria a uma prática adivinhatória romana, muita antiga, baseada na "leitura" do que se via ao abrir ritualmente animais sacrificados, em suas entranhas ( inter pres), para prognosticar o futuro. No mesmo ambiente cultural, outras formas divinatórias, menos cruentas, eram utilizadas, como a leitura do vôo sincopado de pássaros, como as andorinhas, e se pode mesmo afirmar que em toda sociedade se produzem tais práticas, mágicas, de atribuição (ou "desentranhamento") de um sentido ao que ocorreu, ocorre e ocorrerá, a partir de algum dispositivo considerado apto a estabelecer vínculos entre esta realidade, mundana, com aquela outra, superior, invisível, em que habitam as forças ou deidades que geram e detêm o controle dessa realidade em que vivemos (e morremos). Daí que uma outra palavra, mais erudita, que guarda sinonímia com aquela que ora nos ocupa, a saber, "hermenêutica", em sua origem grega, seja associada ao deus Hermes, filho de

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Zeus com a Ninfa Maya, que se tornou o mensageiro de pés alados, mediador e responsável pela comunicação entre seu pai e os mortais, sendo por isso atribuída a ele, na narrativa mitológica helênica, a invenção da linguagem e da escrita.

Apesar de questionada e duvidosa (GRONDIN, 1999), como geralmente ocorre com a etimologia dos vocábulos, especialmente aqueles mais significativos, essa aproximação com a mitologia, além de esclarecedora enquanto alegoria, nos coloca, justamente, diante de situação que requer o emprego da interpretação, seja como interpretatio, seja como hermèneutiké. Isso para transitarmos de um sentido que esteja "escondido", na interioridade de animais sacrificados ou do pensamento de quem se dedica a entender o sentido do mundo, podendo ainda esse sentido se perder por estar muito à vista, na literalidade de uma narrativa mítica - sendo ho mythos, em grego, justamente este relato de uma vivência (LEÃO, 2002) -, donde a necessidade de se trazê-lo à compreensão, expressando-o por meio de uma espécie de tradução ou deciframento do que se interpreta, em linguagem corrente. É dessa expressão e compreensão, decorrente do ajuste entre o que está em dada sentença e a intenção a ela subjacente, para assim aferir de sua veracidade, que se vai tratar, quando Aristóteles - tal como em geral ocorreu, precedido por seu mestre Platão -, faz uma elaboração filosófica do problema, no âmbito de sua obra Peri hermèneias, traduzida em latim por De interpretatione. Assim, apesar dessa aproximação semântica entre o que teria sido, originalmente, a designação de uma prática divinatória, no caso da interpretação, enquanto forma de saber, e a hermenêutica, ao ponto de se ter uma sinonímia entre ambas, na Grécia antiga se diferenciava perfeitamente a ambas, ao mesmo tempo em que se considerava guardarem entre si uma espécie de parentesco. Tal como se nota no pequeno diálogo de Platão denominado Epínomis, ou seja, "apêndice", a outro mais extenso, que é "As Leis", sendo aquele denominado também "O Filósofo", quando já em sua segunda manifestação o personagem designado com "O ateniense" considera como duas espécies de um mesmo gênero de saber a quiromancia ( mantiké) e a hermenêutica, ambas incapazes de conduzir ao saber verdadeiro, a Sophia. Isto porque a hermenêutica, enquanto arte ou "capacidade" (na trad. bras.) geral de interpretar oráculos, conduziria à compreensão do que é dito por estes que, em seu estado de êxtase, de mania, sequer sabem o que dizem, mas ainda não permite estabelecer se é verdadeiro ( alethes) o que foi dito.

Em texto clássico e de grande importância histórica, denominado "A Origem da Hermenêutica", de 1900, Wilhelm Dilthey, logo no princípio, assevera que a "arte de interpretar ( hermeneía) nasceu na Grécia, fruto da necessidade de ensinar". Concretamente, este ensino baseava-se em textos poéticos como os de Homero e Hesíodo, para citar apenas dois dos mais conhecidos dentre os "pais-fundadores" da Civilização, que é um dos pilares daquela dita Ocidental. Daí porque um outro filósofo contemporâneo, identificado com a elaboração filosófica da hermenêutica, Paul Ricouer, na abertura mesmo de sua obra, igualmente clássica, "O Conflito das Interpretações. Ensaios de Hermenêutica" vai afirmar que o problema da interpretação é colocado, primeiramente, enquanto um problema de exegese, ao aparecer "no contexto de uma disciplina que se propõe a compreender um texto, a compreendê-lo a partir de sua intenção, baseando-se no fundamento daquilo que ele pretende dizer".

Eis que terminamos por introduzir uma terceira palavra, "exegese", também considerada um sinônimo de interpretação, mas que se restringiria a uma dimensão mais filológica, por vincular a interpretação a objeto de certo tipo, que são os textos. Ao mesmo tempo, percebe-se aí a grande amplitude em que, já nesse nível exegético, o problema da interpretação se situa, com implicações para além - ou aquém -, inclusive, da própria filosofia, especialmente no campo de religiões como aquelas baseadas em textos, a exemplo dos Vedas, da Bíblia e do Corão, assim como da literatura em geral e, também, de maneira igualmente paradigmática, desde épocas bastante recuadas, no campo do Direito, na forma da interpretação jurídica. Contemporaneamente, pode-se destacar a interpretação psicanalítica como um exemplo que se situa neste paradigma.

2 Os Sentidos da Interpretação Jurídica

O problema hermenêutico pode ser considerado, principalmente no âmbito das chamadas ciências do espírito ou culturais, como um desdobramento da questão metodológica e, portanto, como uma preocupação que se coloca igualmente ao nível epistemológico, visto que 'interpretação', em sentido amplo, é sinônimo de "compreensão", quando esta seria precisamente a tarefa a ser realizada por aquelas ciências, entre as quais se inclui o Direito, em oposição ao objetivo descritivo das ciências ditas exatas ou naturais. "Explicamos a Natureza, compreendemos a Cultura", foi o lema de Dilthey.

No campo do Direito, em virtude mesmo da conexão íntima que se demonstrou existir entre conhecimento e interpretação, a ponto de tornar em grande parte coincidentes a questão hermenêutica com a questão epistemológica jurídica, verifica-se um tratamento da primeira que em tudo faz lembrar aquele dispensado a esta última. É assim que ao lado dos que consideram a atividade de interpretação do Direito como voltada para a determinação da verdade, conferindo-lhe, portanto, caráter científico, outros a concebem como mera técnica decisória, em face de valores antagônicos. Enquanto isso, Kelsen entende não ser esse sequer um problema de Teoria do Direito, mas sim de Política do Direito, postulando, ab initio, ser a interpretação realizada pelos órgãos estatais aplicadores do Direito a interpretação correta, em qualquer circunstância, e distinguindo, nessa aplicação, um ato de conhecimento, que transcende os limites do Direito positivo, revelador de inúmeras possibilidades de interpretação de uma norma, e um ato de vontade, em que se escolhe uma delas, o que se toma ela própria uma norma jurídica (individual), e deverá ser considerada como autêntica e

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irrefutável. Incidentalmente, pode-se observar, na concepção kelseniana, considerada em linhas gerais, como é impreciso o limite onde termina a interpretação e começa a aplicação do Direito, quando, na verdade, como deflui do que ficou assinalado, são operações obviamente distintas, conquanto intimamente inter-relacionadas. G. Tarello, aplicando ao problema o que U. Scarpelli denominou 'semântica terapêutica', distingue inicialmente duas acepções em que se utiliza a palavra 'interpretação', sendo uma "aquela pela qual o vocábulo se refere a uma atividade; a segunda acepção é aquela pela qual o vocábulo se refere a um objeto (que eventualmente...

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