Normas e Fatos: A Justiça do Trabalho em Ação

AutorAdalberto Cardoso
Páginas450-456

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A avaliação do efeito das instituições trabalhistas sobre o funcionamento dos mercados de trabalho e da economia como um todo ganhou importância renovada nos últimos dez ou quinze anos na América Latina. Uma visão em particular tornou-se hegemônica entre nós, recomendando políticas invariavelmente favoráveis à flexibilização das leis trabalhistas, com o propósito de reativar o crescimento econômico, aumentar a produtividade das empresas e a competitividade dos países latino-americanos e, dessa maneira, facilitar sua adaptação às exigências da globalização. No entanto, a experiência indica que os resultados alcançados através dessas políticas foram muito diversos e, em vários casos, distantes dos objetivos originalmente almejados. Além disso, mudanças semelhantes tiveram, muitas vezes, efeitos distintos em cada país e provocaram resultados não antecipados, entre outras razões, por não considerarem a natureza complexa das instituições do mercado de trabalho, nem o fato de que elas resultam da combinação de um conjunto de fatores históricos e culturais que não se transferem facilmente de um país para outro.

Um dos aspectos centrais, sempre negligenciado pelos estudos a respeito dos efeitos das instituições trabalhistas sobre a eficiência dos mercados de trabalho, é o grau de efetividade da legislação existente, isto é, sua vigência real no cotidiano das relações de trabalho. O sistema de regulação do trabalho de determinado país pode ser muito detalhado e rígido em termos formais, mas muito flexível na prática, simplesmente porque os empregadores podem escolher não cumprir o que a lei prescreve. Por outras palavras, uma norma só existe no processo de fazer-se valer. No Brasil, por exemplo, as instituições responsáveis pela operação do direito do trabalho (como a Justiça do Trabalho) e pela fiscalização de sua aplicação (como a Inspeção do Trabalho, os sindicatos, o Ministério Público e entidades da sociedade civil) são parte do processo pelo qual uma norma trabalhista deixa o papel e ganha efetividade no mundo por ela regulado. Pode ser o caso de que a interação complexa dessas instituições ofereça incentivos importantes para que a legislação trabalhista não seja cumprida, ou que o seja apenas em parte. Pois é justamente este o caso do Brasil. Entre nós, denunciar a rigidez da legislação e exigir sua flexibilização, como faz a literatura econômica hegemônica no debate nacional, sem levar em conta o fato de que parte dela não é cumprida, é cometer o sério equívoco de tomar o direito pelo mundo, a norma legal pelos fatos.

O modelo brasileiro de relações de trabalho caracteriza-se por ser legislado, ou seja, a lei tem precedência sobre a negociação coletiva, e boa parte do direito do trabalho encontra-se constitucionalizada. O guardião desse direito entre nós é a Justiça do Trabalho. Se tudo o mais falhar (sindicatos, ministério público, inspeção do trabalho), ao empregado ainda restará o recurso ao judiciário para garantia de seus direitos. Nessas condições, avaliar o desenho e o desempenho da Justiça do Trabalho parece essencial não apenas à compreensão da dinâmica das relações de classe no país, mas também para desfazer equívocos de interpretação sobre a rigidez de nossas instituições, no interesse de melhor informar o debate sobre a eventual reforma da legislação trabalhista brasileira. É o que propomos aqui. No limitado espaço disponível, apresentamos um rápido esboço do processo e do judiciário trabalhista para, em seguida, vê-los em operação, para com isso avaliar a eficácia de sua atividade. Concluímos com algumas consequências da análise para o debate atual.

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O processo judicial trabalhista brasileiro foi originariamente desenhado para ser acessível ao operário industrial urbano, numa época de crescimento da economia e de pleno emprego. Guiada por princípios de celeridade, informalidade, conciliação e eficiência, a Justiça do Trabalho deveria receber e decidir a reclamação trabalhista em audiência única, obedecendo a procedimentos orais informais. Com o tempo, porém, a faculdade de estar em juízo sem advogado entrou em desuso, sendo raro hoje em dia. Primeiro, porque os magistrados, afeitos ao formalismo processual, demonstram clara preferência pela via de representação por advogado, principalmente porque o empregador muito provavelmente far-se-á representar, e o trabalhador desassistido estará em desvantagem. Em segundo lugar, pela ‘contaminação’ do processo trabalhista por institutos que migram do processo

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civil, vedando a leigos o trâmite processual. Em terceiro lugar, porque, em grau recursal, a discussão é eminentemente técnica, exigindo profissionais qualificados. Acrescente-se que o art. 133 da Constituição Federal reza que "O advogado é indispensável à administração da justiça...", dispositivo refletido no estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil. Ademais, os sindicatos têm entre suas responsabilidades a assistência jurídica de seus representados. Tudo isso conspirou para aproximar o processo trabalhista do processo civil, em prejuízo dos princípios gerais que nortearam a criação da Justiça do Trabalho, em especial a celeridade, a informalidade e a conciliação.

A Justiça do Trabalho organiza-se em três instâncias:

(i) as Varas do Trabalho, grosseiramente assimiláveis à esfera municipal; (ii) os Tribunais Regionais do Trabalho, com jurisdição correspondente aos estados; (iii) e o Tribunal Superior do Trabalho, com sede em Brasília e jurisdição nacional. Os procedimentos siameses ao processo civil fazem com que, das decisões de cada uma destas instâncias, caiba recurso para a que lhe é superior - recurso ordinário da decisão das varas para os tribunais regionais e daí recurso de revista para o Tribunal Superior do Trabalho, terceira instância. E, como se não bastasse, ainda é possível manejar o recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, quando há matéria constitucional em discussão. Ora, a ampliação da constitucionalização do Direito do Trabalho operada pela Constituição Federal de 1988 multiplicou as possibilidades de recurso extraordinário. Com isso temos um dos principais limites do processo do trabalho, tendo em vista seus objetivos originais: superposição de instâncias e excesso de recursos possíveis.

É verdade que, ao longo do tempo, houve preocupação do legislador em limitar os recursos. Em primeiro lugar, a lei só os autoriza no caso de decisões terminativas - sentenças (primeiro grau), acórdãos (segundo e terceiro graus) - e não de decisões interlocutórias, isto é, aquelas proferidas durante o desenrolar do processo. Em segundo lugar, está na agenda política preocupação com reformas processuais que deem mais presteza às demandas trabalhistas. A instituição do ‘procedimento sumaríssimo’ em 2000, para causas que não excedam 40 salários mínimos (excluídas demandas contra o poder público), teve justamente o propósito de resgatar os princípios de oralidade, celeridade e conciliação na ação judicial. No primeiro caso, porém, a denegação do seguimento de um recurso pode ser contestada através do ‘agravo’, e muitas oportunidades...

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