Estado social, globalização, neoliberalismo e constituição dirigente

AutorFábio de Oliveira
CargoMestre e Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Páginas211-223

Fábio de Oliveira1

Page 211

1 Introdução

Não é novidade que a teoria da Constituição Dirigente angaria larga discussão, polêmica, está sujeita a alterações doutrinárias e aos influxos da facticidade, conhece especializações em função das peculiaridades normativas e empíricas, além de computar uma série de mal entendidos, problemas de compreensão, que refletem uma dificultosa ou uma inapropriada identificação do objeto. Afinal, e esta é a primeira pergunta, o que é uma Constituição Dirigente? Afinal, e esta é a segunda interrogação, o que é a Constituição Dirigente brasileira?

Ademais, a temática do constitucionalismo diretivo enfrenta uma questão existencial capital. A Constituição Dirigente, enfim, é morta ou é viva? Como é notório, a discussão é fomentada, em destaque primaz, pelas lições do Professor José Joaquim Gomes Canotilho, da Universidade de Coimbra. Em um escrito, prefácio da 2ªed. do clássico Constituição Dirigente e vinculação do legislador, o fragmento da afirmação, que tantas controvérsias e equivocadas leituras ocasionou: aPage 212 Constituição Dirigente está morta. Diz-se fragmento porque a citação é mesmo apenas trecho de uma assertiva maior, que prossegue com a conjunção subordinativa se. E, assim, não se fecha na morte, mas se abre para a vida. Em reprodução sem cortes, sem censura: "a Constituição dirigente está morta se o dirigismo constitucional for entendido como normativismo constitucional revolucionário capaz de, só por si, operar transformações emancipatórias"2. Isto é: a morte é condicional.

O foco deste artigo não é investigar globalmente o arquétipo teorético da Constituição Dirigente, seu arcabouço basilar, suas nuanças, especificidades, seu programa, seus desdobramentos, seus instrumentos, a revisão ou o rompimento com o(s) modelo(s) construído(s), vitórias, obstáculos e derrotas3. O enfoque está na relação entre a constitucionalidade dirigista, o protótipo estatal, nomeadamente o Estado do Bem-Estar Social, e o fenômeno da globalização, em especial na sua vertente econômica, considerada na versão do receituário neoliberal. Faz-se uma análise das influências recíprocas.

2 Nota sobre a constituição dirigente

Em conceituação sucinta, Constituição Dirigente é aquela que versa uma normatividade, um programa, de cunho procedimental e conteudístico, a conformar (limitar e condicionar) as ações ou deliberações do Estado e da sociedade. Isto, por si só, não representa novidade em relação ao papel desempenhado desde sempre pelo Direito: dispor o que é proibido (interdito fazer), o que é devido (imposto fazer) e o que é permitido (possível fazer).

A Constituição Dirigente, através de normas, não através de conselhos, exortações ou suges tões, dirige a vontade política. Saliente-se: dirigismo é norma, não é convite. Tal não significa que a Constituição Dirigente queira totalizar o mundo da vida, queira antecipar todas as deliberações, asfixiar a democracia, fechar todos os assuntos ou direcionar todos os procedimentos para resultados fixados, vincular tudo. Este não é o programa, que, além de irrealizável e nada conveniente, seria megalomaníaco. De tão absurdo, nem cogitável. Porém, não deixa os procedimentos ao léu, não reduz a justiça ao rito processual, impõe limites e condicionamentos aos processos dialógicos, impõe que as decisões sejam justificadas pela bondade intrínseca (Canotilho), uma combinação entre legitimidade formal e legitimidade material.

A Constituição Dirigente não pode ser concebida como sinônimo de marco cerrado4, a ter o ímpeto de dominar taxativamente todas as funções estatais, a não deixar qualquer espaço de liberdade, como se tudo se resumisse a ser mera execução dos seus comandos. A problemática da teoria da Constituição está em estipular o que deve ficar aberto e o que deve ficar fechado5. Buscase, pois, o meio-termo, o equilíbrio entre abertura e fechamento. Ressalte-se: o dirigismo não pressupõe fechamento, regulação, integral. Abertura e fechamento são complementares. Indubitável é que a constitucionalidade dirigista não se resigna em ser instrument of government. Ao invés, a diretividade reza a vinculação do programa de governo ao programa da Constituição.

Tendo em vista que a Constituição funda o Estado, enuncia os direitos fundamentais, é indispensável analisar o preceituado pela Lei Fundamental. É dizer: a teoria do Estado, bem como a teoria dos direitos fundamentais, passam pela teoria da Constituição. Então, a importância de estudar o Estado Social, a globalização e o neoliberalismo diante do que prevê a Carta Magna.

3 O estado social de direito e a constituição dirigente

Muitas das vigentes Constituições estabelecem, expressamente, o Estado Social de Direito como o modelo estatal próprio para as suas respectivas sociedades. É o que acontece, por exemplo, com a Constituição da Alemanha (art. 20, 1), com a Constituição da França (art. 1º), com a Constituição da Espanha (art. 1º, 1), com a Constituição da Venezuela (art. 2º), com a Constituição do Paraguai (art. 1º). Outras, como a Constituição do Brasil, a Constituição de Portugal ou a Constituição do México, ainda que não disponham explicitamente, também perfilham, sem sombra de dúvida, o Estado Social, haja vista que decorrência evidente dos seus regimes.

Algumas conclusões relativas ao contato entre Estado Social e Constituição Dirigente já podem ser extraídas destas constatações. Em primeiro lugar, importa ressaltar que o Estado é um fenômeno social e encontra-se fundado, organizado, pela Constituição. Ora, a primeira referência para se saberPage 213 que tipo de Estado se tem é a Carta Magna. Neste sentido, o Estado Social é um Estado Constitucional. Em segundo lugar, interessa notar que é possível haver Estado Social ainda que a Constituição não o preveja ou mesmo na inexistência de Constituição escrita, isto é, na hipótese de Constituição Consuetudinária (ou parcialmente costumeira)6. Em terceiro lugar, o Estado Social é enunciado por Constituições que não se classificam, propriamente, como programáticas ou dirigistas, como no caso da Constituição francesa. Em quarto lugar, calha acrescentar que o dirigismo jurídico não veicula, por essência, uma normatividade de cunho social, ou seja, não é subjacente, por princípio, ao Estado Social, porque nada impossibilita haver uma diretividade neoliberal, afeita ao Estado Mínimo.

Logo, não há uma relação imprescindível entre Estado Social e Constituição Dirigente, pois tanto o Estado Social pode existir sem uma correlata Constituição Dirigente quanto uma Constituição Dirigente pode existir sem estatuir um Estado do Bem-Estar. Todavia, a normalidade é que uma Constituição Dirigente alicerce um Estado Providência, como se passa em Portugal, no Brasil, no México ou na Venezuela7. Ademais, cumpre salientar um ponto central para uma compreensão coerente. Assim como não há um único desenho para toda a Lei Fundamental, mas sim diversos (cada Lei Fundamental com a sua própria identidade), não existe uma só configuração para o Estado Social, ainda que se possa diagnosticar padrões básicos de caracterização. Tal como existem variados tipos de Constituição Dirigente, existem variados tipos de Estado Social. Significa afirmar, por ilustração: a despeito do Brasil e de Portugal possuírem Cartas Magnas Diretivas, não possuem a mesma arquitetura de Estado Social. Por exemplo, enquanto a Carta portuguesa prevê que o serviço nacional de saúde étendencialmente gratuito (art. 64), com o que permite alguma cobrança pela prestação deste serviço estatal, a Constituição brasileira, de acordo com a interpretação corrente, determina que a prestação do serviço de saúde por parte do Estado é, integralmente, gratuita, vedada, pois, a cobrança sob qualquer título (art. 196; art. 198, II). Outrossim, enquanto a Lei Fundamental brasileira prevê a gratuidade do ensino público, inclusive o universitário (art. 206, IV), a Constituição de Portugal estabelece a progressiva gratuidade de todos os graus de ensino (art. 74, 2, e), dando ocasião, v.g., ao pagamento de mensalidades ou anuidades nas Universidades públicas.

É preciso registrar, também, que a Constituição Dirigente não esgota toda a disciplina referente ao Estado Social. Não poderia fazê-lo. Muito da regulação do Welfare State é realizada pela legislação ordinária e por atos administrativos. A Carta Constitucional apenas traça as linhas mestras, ordena, em termos elementares, os órgãos estatais, enuncia plataformas, fins, versa, é óbvio, sem exaurir, direitos e deveres. Deve-se atentar para este aspecto para que não se remeta para a Lei Fundamental e, desta feita, para o Estado por ela erguido, críticas descabidas, que deveriam ser destinadas ao legislador ordinário ou à Administração Pública. O tamanho, os objetivos, as competências, os órgãos, as ações, os recursos financeiros e as infra-estruturas, as prioridades, enfim, o funcionamento do Estado do Bem-Estar não se encontra global e plenamente prescrito pela Lei Fundamental. É imperioso, portanto, determinar se a questão, realmente, diz respeito à normatividade constitucional ou se está localizada na legislação infra ou em atos administrativos, isto é, na concretização ou implementação do arquétipo do Estado Social propugnado pela Constituição. Até que medida a equivocada organização de órgãos estatais, a má gestão ou a carência de recursos públicos, a ineficiente prestação de um dado serviço, por exemplo, podem ser atribuídas à Carta Maior ou ao Estado Social? Isto sem mencionar a corrupção sistêmica que assola o país, dilapida o patrimônio público, deslegitima os Poderes, desmotiva o povo e tantas vítimas faz. Há que haver uma separação neste campo, sob pena de uma análise confusa e contraproducente.

Sem embargo, o Estado Social...

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