Neocorporativismo x Neoconstitucionalismo: Um Debate Sindical Contemporâneo

AutorTereza Aparecida Asta Gemignani
CargoDesembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Campinas). Doutora em Direito do Trabalho. Pós-graduação stricto sensu (USP)
Páginas30-39

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Os fatos são subversivos.

Eles subvertem as alegações feitas tanto por líderes eleitos democraticamente como por ditadores, biógrafos e autobiógrafos, espiões e heróis, torturadores e pós-modernistas.

Subvertem mentiras, meias verdades, mitos e todos aqueles discursos fáceis que confortam homens cruéis. [Timothy Garton Ash]

1. Introdução

A descoberta de novas fontes de energia veio provocar altera-ções signiicativas no modo de trabalhar e na organização produtiva, acendendo o estopim que iria delagrar a Revolução Indus-trial.

A utilização intensiva do trabalho assalariado, com a reunião de diversas pessoas num mesmo espaço, por um longo período, que se repetia dia após dia, criou vínculos e amalgamou interesses comuns, que iriam se solidiicar no decorrer do tempo. A percepção de que todos enfrentavam as mesmas condições adversas no local de trabalho moldou interesses coletivos e estimulou o associativismo, situação fática que cresceu ao ponto de provocar seu

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reconhecimento de direito, cor-poriicado nos sindicatos.

A expansão da indústria e do comércio se acentuou nos séculos seguintes e conferiu visibilidade ao conlito de interesses, que se alastrou e explodiu como questão social.

O aumento da temperatura e pressão deste movimento passou a abalar as estruturas do poder estatal, levando ao rompimento das barreiras do constitucionalismo liberal e provocando o surgimento de um novo modelo constitucional, que inseriu a ideia de justiça social em sua estrutura, conferindo ao conceito da igualdade valor jurídico equiparado àquele que até então tinha sido desfrutado com exclusividade pelo conceito de liberdade.

A Constituição do México (1917) se revelou pioneira neste sentido, seguida pela alemã de Weimar (1919), que o repercutiu pela Europa, encontrando solo fértil para a propagação das novas ideias.

Entre os novos direitos sociais, merece ser destacado aquele que garantiu liberdade de coalizão aos trabalhadores para a defesa de seus interesses e melhoria das suas condições de trabalho, conferindo reconhecimento jurídico ao direito de associação, o que representou avanço signiica-tivo para uma situação fática até então colocada à margem, vista como delito social.

Na segunda metade do século XX este modelo passou a enfrentar vários desaios, cujos questionamentos permanecem em aberto, recebendo respostas oscilantes, que ora miram no neocorporativismo, ora no neoconstitucionalismo.

Este artigo se propõe a estudar a questão com foco no caso brasileiro.

2. A situação brasileira

Ao ingressar na Organização

Internacional do Trabalho (OIT), criada pelo Tratado de Versalhes assinado em 1919, o Brasil assumiu compromisso nacional e internacional de incorporar o novo modelo de constitucionalismo social em seu sistema. E assim o fez com a Constituição Federal de 1934, que, a par de um notável rol de direitos sociais e trabalhistas, agasalhou um inovador modelo de pluralismo sindical, que, entretanto, foi rapidamente afastado pelas cartas posteriores, que passaram a adotar o modelo de unici-dade sindical.

A Constituição de 1988 quebra esse arquétipo, até então apresentado como maniqueísta, oscilante entre duas posições excludentes, ao agasalhar um modelo híbrido, que no caput do artigo 8º garante expressamente a liberdade de associação sindical, enfatizando em seu inciso V que ninguém será obrigado a iliar-se ou manter-se iliado a sindicato. Porém, no inciso II, deste mesmo artigo, veda a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria proissional ou econô-mica na mesma base territorial, a ser deinida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um município.

Promulgado o texto constitucional, alguns doutrinadores logo se insurgiram contra o que classi-icaram de insustentável contra-dição. Entretanto, não comungo deste entendimento por considerar que a Constituição Federal foi sábia ao abrir os caminhos institucionais de um rito de passagem, que precisava ser trilhado pelo amadurecimento das duas posições, para que se pudesse chegar ao modelo deinitivo, tendo como

bússola de navegação o valor inserido no caput do preceito, que nesta posição deve atuar como norte de interpretação de seus incisos.

Porém, transcorridos mais de 25 anos, este rito de passagem não só está longe de ser concluído, como emperrou no meio do ca-minho pela intensiicação de um acirrado antagonismo entre os que defendem a unicidade obrigatória pautada pela perspectiva do neocorporativismo, que resgata os parâmetros traçados na década de 30 do século passado, e os que priorizam as diretrizes do neoconstitucionalismo, restaurando as premissas postas pelo constitucionalismo social, como estabelecido em nossa carta política de 1988.

O que levou a essa situação de impasse?

3. O ordenamento jurídico nacional

As primeiras décadas do século XX foram marcadas por um período conturbado, não só na seara política, frente à necessidade de consolidar a nascente república brasileira, mas também no meio social/trabalhista, agitado por intensa atividade de líderes sindicais. A organização sindical teve sua primeira regulamentação em 1903 (Decreto 979), que veio conferir disciplina legal aos sindicatos rurais. Em 1907, o Decreto 1637 passou a regulamentar a atuação dos sindicatos urbanos, admitindo de forma principiológica a pluralidade sindical.

Os trabalhadores que para cá aportaram, na tentativa de obter melhores condições de vida fugindo de uma Europa devastada pela guerra, estavam acostumados a uma relação de trabalho livre e, por isso, passaram a encontrar notórias diiculdades quando se depararam com a mentalidade

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autoritária dos proprietários, que resistiam a reconhecer os novos tempos, pois há séculos estavam acostumados a lidar com relações de trabalho servil e escravo, inten-siicando a insatisfação crescente que iria levar à questão social.

Talvez por isso, tentando obter o controle da situação que se agravava, em 1931 foi promulgado o Decreto 19.770, que, in-luenciado pela Carta Del Lavoro italiana, desvia o curso da pluralidade e aponta para a unicidade, abrindo caminhos à cooptação dos sindicatos pelo organismo estatal, conferindo-lhes uma estrutura corporativa resistente, cujas balizas principais permanecem até hoje, após a malograda tentativa de reversão prevista no artigo 120 da Constituição Federal de 1934.

Na esteira da diretriz traçada pela carta de 1937, o Decreto 1402, de 1939, veio fortalecer a intervenção estatal e a estrutura corporativa, canalizando a atuação sindical para a esfera colaboracionista e assistencialista, que neste sentido oferecia providencial suporte para a manutenção do patrimonialismo. Neste desenho o Estado surge como salvador da sociedade, que "não estava preparada para o self-government", acreditando-se que sob "a ação pedagógica do Estado, a socie-dade, ao longo do tempo, se dotaria da capacidade de participar da administração de seus interesses", como explica Luiz Werneck Vianna1, pontuando que nosso autoritarismo se apresentava "manso e justiicado pelos seus ins benfa-zejos", numa versão instrumental que "ganhou galas de descoberta original e ainda persiste sem coragem de dizer seu nome", mas que se posicionava em lagrante colisão com a diretriz traçada pela "Carta Magna de 1988, expressão de uma ilosoia política centrada nos ideais de autonomia do indivíduo e da sociedade diante do Estado"2.

4. O conceito de categoria no direito sindical brasileiro

O conceito de categoria no direito sindical brasileiro está lastreado na concepção corporativa do direito italiano, mas não foi transplantado para nosso ordenamento de forma direta, recebendo signiicativa contribuição da dou-trina francesa, para agregar à sua coniguração a noção de similari-dade e conexidade, como revela o artigo 511 da CLT, ao dispor:

Art. 511. É lícita a associação para ins de estudo, defesa e coordenação dos seus interesses econômicos ou proissionais de todos os que, como empregadores, empregados, agentes ou trabalhadores autônomos ou proissionais liberais exerçam, respectivamente, a mesma atividade ou proissão ou atividades ou proissões similares ou conexas.

§ 1º A solidariedade de interesses econômicos dos que empreendem atividades idênticas, similares ou cone-xas, constitui o vínculo social básico que se denomina categoria econômica.

§ 2º A similitude de condições de vida oriunda da proissão ou trabalho em comum, em situação de emprego na mesma atividade econômica ou em atividades econômicas similares ou conexas, compõe a expressão social elementar compreendida como categoria proissional.

§ 3º Categoria proissional diferen-ciada é a que se forma dos empregados que exerçam proissões ou funções di-ferenciadas por força de estatuto pro-issional especial ou em consequência de condições de vida singulares.

§ 4º Os limites de identidade, similaridade ou conexidade ixam as dimensões dentro das quais a catego-ria econômica ou proissional é ho-mogênea e a associação é natural.

Assim sendo, para o direito brasileiro o conceito jurídico de categoria está escorado em dois requisitos: a atividade econômica preponderante do empregador e a similitude das condições de trabalho dos empregados, não só por identidade, mas também por conexão, o que terá desdobramentos doutrinários relevantes, como se destacará ao longo deste trabalho.

5. A organização sindical no meio rural

A primeira lei sindical surgida no Brasil, em 1903, visava disciplinar sua organização no meio rural, sintomaticamente porque era o local em que a agitação de...

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