Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo

AutorEduardo Cambi
CargoMestre e Doutor em Direito pela UFPR; Professor de Direito Processual Civil da PUC/PR e da UNESPAR; Membro do Ministério Público do Estado do Paraná
Páginas1-44

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Introdução

A Constituição, como Lei Fundamental, estabelece, explícita ou implicitamente, os valores, os princípios e as regras mais relevantes para a compreensão do fenômeno jurídico.

A relação entre a Constituição e o processo pode ser feita de maneira direta, quando a Lei Fundamental estabelece quais são os direitos e as garantias processuais fundamentais, quando estrutura as instituições essenciais à realização da justiça ou, ainda, ao estabelecer mecanismos formais de controle constitucional. Por outro lado, tal relação pode ser indireta, quando, tutelando diversamente determinado bem jurídico (por exemplo, os direitos da personalidade ou os direitos coletivos ou difusos) ou uma determinada categoria de sujeitos (crianças, adolescentes, idosos, consumidores etc), dá ensejo a que o legislador infraconstitucional preveja regras processuais específicas e para que o juiz concretize a norma jurídica no caso concreto.

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A efetividade da Constituição encontra, pois, no processo um importante mecanismo de afirmação dos direitos nela reconhecidos. A Constituição Brasileira de 1988 não somente pela sua posição hierárquica, mas pela quantidade e profundidade das matérias que disciplinou, está no centro do ordenamento jurídico, não se podendo compreender o processo, sem, antes, buscar seus fundamentos de validade – formal e material – na Lei Fundamental.

A expressão “neo” (novo) permite chamar a atenção do operador do direito para mudanças paradigmáticas. Pretende colocar a crise entre dois modos de operar a Constituição e o Processo, para, de forma crítica, construir “dever-seres” que sintonizem os fatos sempre cambiantes da realidade ao Direito que, para não se tornar dissociado da vida, tem de se ajustar – sobretudo pela hermenêutica – às novas situações ou, ainda, atualizar-se para apresentar melhores soluções aos velhos problemas.

O Direito não pode ficar engessado aos métodos arcaicos, engendrados pelo pensamento iluminista do século XVIII. O pensar o Direito deve passar por um aggionamento para que a sua concretização, para não ficar presa a institutos inadequados aos fenômenos contemporâneos, não se dissocie da realidade, frustrando seu escopo fundamental de abordar a condição humana nas múltiplas e complexas relações sociais, políticas e econômicas.

A pretensão se coloca em uma dimensão aberta pelo pós-modernismo jurídico, ao questionar as bases iluministas do Direito Moderno, concebido como instrumento de revelação de verdades, mediante o raciocínio silogístico, pelo qual os valores jurídicos seriam auto-evidentes, porque inatos ao homem, bastando se valer do uso adequado da razão 1 .

O novo, contudo, dentro das múltiplas e complexas relações sociais, está posto, antes, para ser compreendido. Por isto, é marcado pela insegurança, pela instabilidade e pelo incerto. É, por isto, um desafio que os estudiosos têm enfrentadoPage 3para, combatendo o imobilismo conceitual, buscar práticas mais adequadas a aquilo a Constituição coloca, como objetivo fundamental, que é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3ª, inc. I, CF).

Luis Roberto Barroso, ao buscar sentido para os prefixos “neo” e “pós”, bem sintetiza o tempo presente 2 : “Vivemos a perplexidade e a angústia da aceleração da vida. Os tempos não andam propícios para doutrinas, mas para mensagens de consumo rápido. Para jingles, e não para sinfonias. O Direito vive uma grave crise existencial. Não consegue entregar os dois produtos que fizeram sua reputação ao longo dos séculos. De fato, a injustiça passeia pelas ruas com passos firmes e a insegurança é a característica da nossa era”. Conclui, pois, o constitucionalista carioca: “Na aflição dessa hora, imerso nos acontecimentos, não pode o intérprete beneficiar-se do distanciamento crítico em relação ao fenômeno que lhe cabe analisar. Ao contrário, precisa operar em meio à fumaça e à espuma. Talvez esta seja uma boa explicação para o recurso recorrente aos prefixos pós e neo: pós-modernidade, póspositivismo, neoliberalismo, neoconstitucionalismo. Sabe-se que veio depois e que tem a pretensão de ser novo. Mas ainda não se sabe bem o que é. Tudo é ainda incerto. Pode ser avanço. Pode ser uma volta ao passado. Pode ser apenas um movimento circular, uma dessas guinadas de 360 graus”.

Esta advertência serve para abrir, com humildade, os caminhos da melhor compreensão das relações contemporânea entre Constituição e Processo.

1. Neoconstitucionalismo

As alterações mais importantes, na compreensão constitucional, a que se denomina de neoconstitucionalismo, podem ser sistematizadas em três aspectos distintos: i) histórico; ii) filosófico e (iii) teórico 3 .

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1.1. Aspecto histórico

Sob o aspecto histórico, as transformações mais importantes no Direito Constitucional contemporâneo se deram, a partir da 2ª Grande Guerra Mundial, na Europa, devendo ser salientadas a Lei Fundamental de Bonn, de 1949, e as Constituições italiana (1947), portuguesa (1976) e espanhola (1978).

Com a derrota dos regimes totalitários (nazi-fascistas), verificou-se a necessidade de criarem catálogos de direitos e garantias fundamentais para a defesa do cidadão frente aos abusos que poderiam vir a ser cometidos pelo Estado 4 ou por quaisquer detentores do poder em quaisquer de suas manifestações (político, econômico, intelectual etc) 5 bem como mecanismos efetivos de controle da Constituição (jurisdição constitucional).

A superação do paradigma da validade meramente formal do direito, em que bastava ao Estado cumprir o processo legislativo para que a lei viesse a ser expressão do direito, resultou da compreensão de que o direito deve ser compreendido dentro das respectivas relações de poder 6 , sendo intolerável que, em nome da “vontade do legislador”, tudo que o Estado fizesse fosse legítimo. Assim, estreitam-se os vínculos entre Direito e Política, na medida em que conceitos comoPage 5os de razoabilidade, senso comum, interesse público etc são informados por relações de poder.

A dignidade da pessoa humana passa a ser o núcleo axiológico da tutela jurídica, não se restringindo ao vínculo entre governantes e governados, mas se estendendo para toda e qualquer relação, mesmo entre dois sujeitos privados, em que, pela manifestação do poder, uma destas pessoas tivesse seus direitos violados ou ameaçados de lesão.

Os reflexos das alterações constitucionais, ocorridas na Europa, foram sentidas, significativamente, no Brasil, com o advento da Constituição Federal de 1988 que marca, historicamente, a transição para o Estado Democrático de Direito. Nestes quase vinte anos de Constituição, sem embargo as constantes reformas constitucionais operadas no texto original, permitiram a construção, paulatina, de uma importante cultura jurídica de valorização do sentimento constitucional. As sérias crises institucionais surgidas no país, nestas duas décadas, como o impeachment de um presidente aos gravíssimos indícios de corrupção que vêm sendo apurados pelas comissões parlamentares de inquéritos, encontraram na Constituição e na jurisdição constitucional as soluções políticas e jurídicas – criticáveis ou não – para a manutenção da estabilidade democrática.

1.2. Aspecto filosófico

Sob o aspecto filosófico, a identificação do direito com a lei, marcada pelo dogma da lei como expressão da “vontade geral”, foi superada pela hermenêutica jurídica que, sem cair na tentação de retornar à compreensão metafísica proposta pelo direito natural, desenvolveu a distinção entre as regras e os princípios, para dar força normativa a estes, com o escopo de ampliar a efetividade da Constituição. Pouca valia teriam os direitos fundamentais se não dispusessem de aplicabilidade imediata, porque não passariam de meras e vagas promessas. Esta tendência é denominada de pós-positivismo, na medida em que os princípios jurídicos deixam de ter aplicação meramente secundária, como forma de colmatar lacunas, para ter relevância jurídica na conformação judicial dos direitos.

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Desta maneira, constitui verdadeira peça de museu o artigo 126 do Código de Processo Civil ao asseverar que o juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei e que no julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. A referida regra jurídica não resiste às interpretações evolutiva do direito e teológica do papel do juiz, na medida em que a norma jurídica, enquanto resultado do processo hermenêutico, não mais se enquadra na arcaica visão da decisão enquanto um silogismo jurídico (premissa maior: a regra jurídica; premissa menor: os fatos; e conclusão), seja porque se adota no Brasil, desde a Constituição Republicana de 1891, o judicial review (isto é, o controle difuso da constitucionalidade), nos moldes norte-americanos, decorrente do caso Marbury v. Madison (1803), com a possibilidade de se negar – no plano formal e/ou materialvalidade à regra jurídica por se opor a um princípio constitucional, seja porque a técnica legislativa se ampara cada vez mais nas cláusulas gerais (p. ex., art. 421/CC, ao tratar da função social do contrato; art. 1.228/CC, par. 1º, ao prever a função social da...

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