O Conceito de Pessoa com DeficiÊncia e seu Impacto nas Ações Afirmativas Brasileiras no Mercado de Trabalho

AutorFernando Basto Ferraz - Elizabeth Alice Barbosa Silva de Araujo - William Paiva Marques Júnior
Páginas51-63

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Introdução

Este trabalho tem por objetivo estudar a necessária reestruturação do conceito de pessoa com deficiência no Brasil, considerando o novo enfoque trazido pela Convenção Internacional de Direitos da Pessoa com Deficiência aprovada em 13 de dezembro de 2006 pela Assembleia Geral da ONU - Organização das Nações Unidas.

Este novo entendimento proporcionará impactos importantes nas ações afirmativas que tratam do acesso e manutenção no emprego do trabalhador com deficiência. Haverá que ser feita uma adequação dos mecanismos de contratação, do meio ambiente de trabalho e da própria cultura social para que o foco não mais esteja na pessoa com deficiência e em suas supostas "limitações", mas nas barreiras físicas e sociais impostas a estas pessoas pela coletividade.

Justifica-se a escolha do assunto pela necessi-dade de ações efetivas e racionais de combate à discriminação no mercado de trabalho, de cuja existência não se ousa discordar, pois resta facilmente comprovada em dados estatísticos e argumentos que serão demonstrados no decorrer do trabalho. A importância de ações afirmativas baseadas no novo conceito de pessoa com deficiência merece destaque como corolário da igualdade material, imprescindível em um Estado Democrático de Direito. A pesquisa será do tipo bibliográfica, com a utilização de dados de pesquisas do Ministério do Trabalho e Emprego - MTE - e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.

Para desenvolver o tema será necessário estudar as regras de proteção da pessoa com deficiência na seara trabalhista na nova Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, na Constituição Federal Brasileira de 1988 e na legislação infraconstitucional que trata da efetivação destes direitos assegurados, fazendo um inter-relacionamento entre as mesmas. Será realizada uma retrospectiva histórica do tratamento e definição de pessoa com deficiência na humanidade. Analisar-se-á, também, as ações afirmativas levadas a cabo pela legislação brasileira na seara trabalhista, investigando sua compatibilidade com a nova ideia trazida pelas normas internacionais de proteção dos direitos humanos.

Por fim traremos os impactos de uma nova perspectiva da pessoa com deficiência nas ações afirmativas para inclusão no mercado de trabalho reali-

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zadas no Brasil. Estas ações se desenvolvem dentro do serviço público e na iniciativa privada com o percentual reservado para pessoas com deficiência.

1. o conceito de pessoa com deficiência

Para conhecer todo o impacto e amplitude do novo conceito de pessoa com deficiência trazido pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência é preciso trazer à tona o histó-rico do tratamento concedido pela sociedade a estas pessoas. Também é necessário que se faça o estudo acerca da positivação deste conceito no ordenamento jurídico pátrio, para, em última análise, aplicá-lo concretamente por meio das ações afirmativas.

1.1. Precedentes históricos

O conceito de pessoa com deficiência teve diversos tratamentos ao longo da história da humani-dade. Aliás, não se trata a priori do conceito abstrato, mas de como a pessoa com deficiência é encarada e incluída dentro da realidade social. A perspectiva com a qual era entendida a deficiência e as causas de sua existência influenciam diretamente a aceitação e participação destas pessoas na sociedade. Da miscelânea destes conceitos biológicos, físicos, morais e até metafísicos, brotou o conceito jurídico que ora se procura desvelar.

Flávia Piovesan delimita quatro estágios na construção dos direitos humanos da pessoa com deficiência1. Num primeiro estágio de total intolerância tais pessoas eram consideradas impuras, castigadas pelos deuses. Platão em A República e Aristóteles em A Política fazem referência à eliminação de crianças nascidas com deformidades, seja por abandono seja atirando-as da cadeia montanhosa de Tygetos na Grécia. Famosa foi a cidade grega de Esparta, onde no reinado de Leônidas, os guerreiros deveriam ser perfeitos para defender suas fronteiras, sendo sumariamente executadas as crianças nascidas com qualquer tipo de deficiência.2

O segundo estágio foi o da invisibilidade. As pessoas eram colocadas em guetos, separadas do resto da humanidade. Como exemplo desta fase tem-se os relatos bíblicos dos leprosos, considerados impuros e segregados por toda a sociedade.

Convém salientar a importância da doutrina cristã, principalmente do Novo Testamento. Com a descrição dos milagres e curas, a pessoa deficiente foi trazida para o centro das atenções. Os preceitos do amor ao próximo, do acolhimento e da universalidade dos direitos humanos foram importantes passos para dar novo enfoque à pessoa com deficiência na sociedade.

O terceiro estágio, talvez o mais vivenciado no Brasil, foi o assistencialismo. Essencialmente marcado pelos avanços da medicina e a tentativa de curar qualquer limitação. O indivíduo seria o portador de uma enfermidade, e deveria receber a ajuda assistencial por parte da sociedade, enquanto não sobreviesse a cura para a sua doença.

A fase que ora se apresenta tem foco nos direitos humanos e na inclusão da pessoa com deficiência de maneira plena em todas as searas sociais. Quem deve ser tratada agora, em que pese a extrema importância da continuidade das pesquisas científicas que visam minorar limitações, é a sociedade. A doença, na expressão pejorativa da palavra, não está mais centrada na pessoa, mas sim na sociedade que tem profundas dificuldades de lidar com as diferenças, com qualquer pessoa que destoe dos padrões vigentes.

No liame desta realidade surgiu, mediante ampla discussão em que fizeram parte ativa as próprias pessoas com deficiência3, a Convenção sobre os direitos das Pessoas com Deficiência da ONU.

1.2. Conceito contemporâneo segundo a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência

Os direitos humanos como um todo são a busca incessante de superar limitações. Existem, entretanto, determinados grupos que estão mais sujeitos a fatores limitantes, sejam estes de ordem física ou social. A proteção destes grupos levou a Organização das Nações Unidas a criar as Convenções Inter-

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nacionais específicas para tratar de grupos menos favorecidos. Podemos mencionar de forma exemplificativa a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação racial,

Convenção sobre todas as formas de discriminação contra a mulher, Convenção sobre os direitos da criança, Convenção Internacional sobre a proteção dos direitos de todos os trabalhadores migrantes e dos membros de suas famílias e, finalmente, a Convenção sobre os direitos das Pessoas com Deficiência.

Definir-se um ser humano como deficiente é tarefa árdua. Também é extremamente importante.

A busca da igualdade material entre as pessoas e o entendimento de que a dignidade humana perpassa a eliminação de todas as barreiras que impeçam seu desenvolvimento completo trouxe a necessidade da criação de mecanismos de efetivação desta igualdade.

A priori se faz uma ligação de deficiência com limitação. Este conceito, no entanto, abrangeria toda a espécie humana. Em maior ou menor grau todos os seres humanos possuem algum tipo de limitação, seja de ordem física, mental, psicológica etc. Somos limitados por natureza e a aceitação de nossa limitação é o primeiro passo para a efetivação de nossa dignidade. Não seria então a limitação que caracterizaria a deficiência em si, mas as barreiras impostas pela sociedade que impedem o pleno desenvolvimento dos seres humanos com os atributos a estes inerentes.

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi adotada pela Organização das Nações Unidas em 13 de dezembro de 2006, de acordo com a Resolução n. 61/106 da Assembleia Geral, mas somente entrou em vigor em 3 de maio de 2008.

No Brasil foi aprovada com quórum qualificado tendo sido publicado o Decreto n. 186/2008 em Diário Oficial da União em 10/07/2008.

Em seu preâmbulo reconhece que o conceito de deficiência está em constante evolução. O mais interessante é que resta comprovada que a deficiência se relaciona intimamente com a ambiência. São as barreiras para o pleno exercício da liberdade e da participação que caracterizam a deficiência em um ser humano. Tal entendimento consta da alínea "e" do referido preâmbulo.

A importância jurídica desta nova acepção agrega aspectos a serem considerados na caracterização de uma deficiência. Além de fatores meramente biológicos, também deverão ser consideradas a sociedade e a cultura em que a pessoa está inserida.

Tais impactos irão emergir no momento da criação de políticas públicas garantidoras dos direitos humanos destes cidadãos. Para Flávia Piovesan o conceito é inovador por agregar o meio ambiente social e econômico como fator que agrava a deficiência.4

Traz ainda esta convenção em seu preâmbulo o reconhecimento da discriminação como violação à dignidade do ser humano (alínea "h") e a importância da autonomia da pessoa com deficiência para fazer suas próprias escolhas...

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