Resistência e Crítica: Revistas Culturais Brasileiras nos tempos da Ditadura

AutorMaria Lucia de Barros Camargo
Páginas05-33
Resistência e Crítica – Maria Lucia de Barros Camargo Boletim de Pesquisa NELIC v. 10 n. 15 2010.2
A resistência tem sido uma das principais chaves
explicativas para se tratar da literatura e da cultura no Brasil
durante a ditadura militar. Nesse período, a palavra “resistir”
tem seu sentido potencializado, inclusive pelas metáforas
bélicas que transformam editores em partisans, livrarias e
revistas em trincheiras, ou poemas em armas, incorporando
aos atos culturais plus de sentidos, imersão na historicidade e
formas de validação. Resistir culturalmente constituía ato
único e legítimo a ser empreendido pela intelectualidade
brasileira “progressista” diante do inimigo comum, o regime
militar.
Neste cenário dicotomizado, não resistir significava
aderir; não ser “progressista”, ou “de esquerda”, significava
ser “conservador”, ou “de direita”. Reconhecida como valor
dentre as faixas de população mais escolarizadas e
politizadas, a resistência irá caracterizar, fomentar e distinguir
a produção cultural, cujos produtos passam a desfrutar de um
público crescente, ou seja, passam a contar, ironicamente,
com um mercado em expansão, que dará forte acolhida e
prestígio à chamada “imprensa alternativa"1 e às revistas
Artigo publicado originalmente na Revista Iberoamericana, v. LXX, n.º
208 / 209, de julho / dezembro de 2004, nas páginas 891 – 913.
Optamos pela republicação do texto a fim de promover a circulação do
artigo também em âmbito brasileiro. Foi feita a atualização ortográfica
conforme o novo acordo ortográfico de Língua Portuguesa, de 01 de
janeiro de 2009.
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1 Kucinski prefere o termo “imprensa alternativa” a “imprensa nanica”
(ambos usados à época) como o mais apropriado para designar os cerca
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Resistência e Crítica – Maria Lucia de Barros Camargo Boletim de Pesquisa NELIC v. 10 n. 15 2010.2
culturais publicadas sob o signo da resistência, partícipes,
assim, do processo de modernização capitalista em curso.
Esse periodismo de resistência surge, se fortalece,
entra em declínio e desaparece no mesmo compasso de sua
eliciadora contra-face, a ditadura militar, que, ao tentar coibi-
la, acabou fomentando a melhor parte da produção cultural do
período. E por isso mesmo talvez não seja fora de propósito
pensar aqueles anos também como “anos eufóricos”, apesar
(ou por causa) do “manto negro” da ditadura. Tal paradoxo se
explicita na voz do editor Ênio Silveira que, ao rememorar
suas atividades à frente da Editora Civilização Brasileira,
destaca, com indisfarçável orgulho, sua reação às
perseguições sofridas durante a ditadura militar e a
legitimação daí decorrente:
Marginalizados e perseguidos, nunca nos submetemos. (...)
passamos a lançar mão de todos os artifícios intelectuais
para continuar nossa antiga luta em defesa de teses
democráticas e progressistas. Curiosamente, os 16 anos
entre 1964 e 1980 foram aqueles que testemunharam nossa
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maior glória, pois o arbítrio e a violência tornaram a editora
símbolo e baluarte da resistência cultural e democrática para
todo o país.
de 150 periódicos surgidos e desaparecidos entre 1964 e 1980, “que
tinham como traço comum a oposição intransigente ao regime militar”.
(1991, p. XIII) Restringe sua análise aos jornais e seus jornalistas, à
questão da imprensa propriamente dita, deixando de abordar revistas
como a Civilização Brasileira ou Teoria e Prática, embora mencione
Argumento. Tratarei desses periódicos mais adiante.
2 (Félix, 1998, p. 77)
Além da atuação pessoal de Ênio Silveira, que fizera
da sua editora a mais ativa e prestigiada da época, não há
dúvida quanto ao principal elemento simbólico dessa
“resistência cultural e democrática”: o lançamento, em março
de 1965, da Revista Civilização Brasileira, marco inaugural da
resistência ao golpe militar exercida nas e pelas revistas
culturais.3 A mesma voz retrospectiva de Ênio Silveira, sem
falsas modéstias, diz:
Marco refulgente dessa fase foi a edição da Revista
Civilização Brasileira, que teve curso de maio de 1965 a
dezembro de 1968, sendo interrompida com a promulgação
do Ato Institucional nº 5 (...), e ressurgiu, teimosamente, sob
o nome Encontros com a Civilização Brasileira, de julho de
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2 Trata-se do discurso de posse como membro titular do Pen Club do
Brasil, pronunciado em 20 de agosto de 1991.
3 Kucinski considera que o “ciclo alternativo”, ou de resistência, se inicia
com o lançamento do tablóide humorístico Pif-paf, em junho de 1964, o
que é verdadeiro se tomarmos como objeto de análise todo o periodismo
cultural. Neste artigo, contudo, tento restringir-me às “revistas literárias e
culturais”, mesmo que, muitas vezes, as diferenças entre os jornais
alternativos e as revistas culturais sejam tênues. Como não há espaço
aqui para discutir tais nuances, assumo a autodenominação do periódico
como critério classificatório.
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