Infância roubada: reflexões sobre a visibilidade de uma das piores formas de trabalho infantil

AutorFernando Basto Ferraz - Elizabeth Alice Barbosa Silva de Araujo - William Paiva Marques Júnior
Páginas31-39

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Introdução

A contemporaneidade faz com que os meios de comunicação criem uma arena, um campo onde os temas ganham visibilidade e se ressignificam. é o lugar do debate público, que impõe não só muita responsabilidade sobre os meios de comunicação, mas também demanda aos atores da cena democrática a missão de cuidar para que eles trabalhem em favor do interesse coletivo. A questão fica ainda mais complexa quando se coloca em pauta o universo das crianças e dos adolescentes, que não só são produtores de notícias, mas também espectadores da mídia.

Isso ocorre também no momento em que os meios de comunicação incluem a internet, em que a informação flui cada vez mais livre, o compartilhamento de imagens e dados pelo mundo torna indivíduos vulneráveis, especialmente o público mais jovem. Além de arena pública, os meios de comunicação elaboram representações sociais não só ao produzir, mas também ao reproduzir crenças e fatores. E, apesar das novas teorias da comunicação acreditarem na liberdade do espectador para receber e assimilar as informações, jornais, televisão e internet ainda orientam condutas e reorientam reflexões.

Num contexto em é que é difícil separar mídia de sociedade, nos interessa dirigir o olhar para a cobertura dos meios de comunicação para a exploração sexual infanto-juvenil, considerada pela Organização Internacional do Trabalho - OIT, como um dos trabalhos mais degradantes. Mas, como esta questão é tratada? Qual o foco apontado para ela?

Ante a demanda de um papel na agenda social brasileira, diagnóstico feito pela Agência Nacional dos Direitos da Infância, Andi (2009), mostra que houve avanços na forma de tratar temas relacionados aos direitos das crianças e dos adolescentes, com o "fortalecimento de uma cobertura mais plural e contextualizada".

Compreendendo que a violência assume diferentes formas e apresenta efeitos diversos, interessa analisar o momento em que os meios de comunicação fazem a cobertura da exploração sexual de crianças e adolescentes, como eles colocam as questões do direito social da infância em pauta e se dão espaço para temas tão complexos e polêmicos nas manchetes, nos títulos, nas chamadas das matérias.

1. a história social da infância

Antes de entrar propriamente nesta questão, interessa percorrer o caminho histórico da ideia de infância. Na Grécia antiga, a infância não era categoria etária especial, não havia sequer restrições nem

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legais ou morais ao infanticídio, mesmo assim, neste período foi dado prenúncio de seu conceito. No Egito e em Roma, filhos de escravos trabalhavam para os amos ou senhores sem remuneração.

"Na Idade Média, o menor trabalhava nas corporações de ofício durante 7 anos e às vezes até mesmo por dez anos, tempo desproporcional à aprendizagem"1. No século XIV, as crianças não eram citadas em legados ou testamentos, um indício de que os adultos não esperavam que elas vivessem muito tempo. Assim como conhecemos hoje, a infância surge na Renascença. Porém, Neil Postman considera que, enquanto estrutura social, ela foi construída por volta do século XVI.

Nesta época, meninos e meninas começaram a usar trajes especiais e a linguagem começava a ficar diferente dos adultos. Até então, não passavam de "adultos em miniatura". "A infância come-çou com a ideia de classe média, em parte porque a classe média podia sustentá-la. Outro século se passaria antes que a ideia se infiltrasse nas classes mais baixas".2

Nas classes baixas, enquanto parte de família de escravos ou nas corporações de ofício, as crianças não tinham distinções dos adultos na hora de trabalhar. Na época da Revolução Industrial, o labor ocorria sem limites, algumas crianças chegavam a trabalhar 16 horas por dia. Na Grã-Bretanha, limpadores de chaminés recrutavam pequenas crianças como auxiliares, que eram incumbidas de subir até o topo afunilado para desobstruir a saída de fumaça das chaminés das casas dos ricos. O único medo que superava o da escuridão e da altura era o medo do capataz que esperava embaixo se não cumprisse bem a tarefa.

Assim, ao longo dos séculos, da mesma forma como a ideia é construída, ela entra em declínio. "Num mundo adulto letrado, ser adulto implica em ter acesso a segredos culturais codificados em símbolos não naturais3".

Desta forma, a imprensa criou uma nova definição de idade adulta. "Antes deste ambiente, a infância terminava aos sete anos e a idade adulta começava imediatamente. Não havia estágio inter-mediário porque nenhum era necessário". Ler seria o flagelo da infância porque os livros ensinam a falar coisas das quais nada sabemos. "Rousseau dizia que a leitura era o fim da infância permanente porque desconstrói a psicologia da sociologia da oralidade. A leitura é o flagelo da infância porque cria a idade adulta"4.

A produção de livros foi, para ele, um indício de que o conceito de infância começava a aparecer. Não é possível subestimar que, com a criação da imprensa, o impacto psicológico da migração massiva da linguagem do ouvido para o olho, da fala para a tipografia. Hoje, a infância escapa à compreensão e o ambiente simbólico em que a sua criação viveu desmoronou vagarosa e imperceptivelmente.

A infância e a idade adulta se tornaram cada vez mais diferenciadas, cada esfera aperfeiçoou seu próprio mundo simbólico e, final-mente, passou-se a aceitar que a criança não podia compartilhar e não compartilhava a linguagem, o aprendizado, os gostos, os apetites, a vida social, de um adulto. Na verdade, a tarefa do mundo adulto era preparar a criança para a administração do mundo simbólico do adulto5.

Assim, a mudança na forma de olhar a infância tem, para o autor, uma relação direta com a produção de livros. Aos poucos, os adultos passaram a adquirir controle sobre o ambiente dos jovens e estavam convidados a estabelecer as condições em que uma criança iria se tornar um adulto. As formas de lidar com essa nova fase da vida foi preocupação de tratados de boas maneiras, como Colóquios de Erasmo, de 1516, que, sob a análise de Norbert Elias, constitui o chamado processo civilizador.

Os problemas decorrentes da adaptação e modelação de adolescentes ao padrão dos adultos só podem ser compreendidos em relação à fase histórica, à estrutura da sociedade como um todo, que exige e mantém esse padrão de comportamento adulto e esta forma especial de relacionamento entre adultos e crianças6.

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Como trataremos da questão da exploração sexual nesta pesquisa, é interessante compreender como a sexualidade se transformou em enclave e, por muito tempo, foi colocada "atrás da parede da consciência" nas sociedades de todo o mundo. "Uma aura de embaraço, a manifestação de um medo sociogenético, cerca essa esfera de vida"7. Segundo Postman, na Idade Média, era comum que "adultos tomarem liberdades com órgãos sexuais das crianças". Para a mentalidade medieval, tais práticas eram apenas brincadeiras maliciosas, fazia parte de uma tradição aceita. Hoje pode dar anos de prisão.

Elias revela que, somente aos poucos, foram formulados métodos para adaptar as crianças ao comedimento sexual, ao controle, à transformação e à inibição de impulsos que foram indispensáveis à vida na sociedade. Assim, as crianças acabaram descobrindo por si mesmas, por meio de intuições e da vida social em que viviam.

Para o autor, na década de 1850, os séculos de infância tinham feito seu trabalho e em toda parte no mundo ocidental a infância era tanto um princípio social quanto fato social. A ironia é ninguém ter notado que, quase ao mesmo tempo, estavam sendo plantadas as sementes do fim da infância. Assim como a revolução gráfica provocou mudanças radicais na infância, a televisão surge como mais um mais um fator para hierarquizar e, talvez, tornar a infância possível.

Hoje, a linha divisória entre infância e idade adulta vem sendo corroída pela televisão, que, para Postman é o paradigma para fazer desaparecer a infância. O autor acredita que a infância está desaparecendo com a ajuda da mídia eletrônica, que afasta a alfabetização para a periferia da cultura e passa a ocupar o lugar do centro.

Ele vê a televisão como uma narcose, que entoperce a razão e a sensibilidade. As arenas simbólicas da sociedade vão tornar a infância necessária ou irrelevante. "Tenho em especial tentado explicar como a nossa nova e revolucionária mídia vem causando a expulsão da infância depois de sua longa permanência na civilização ocidental8". Os efeitos potenciais de um meio de comunicação podem tornar-se impotentes em razão do uso que se faz dele fazendo com que a infância torne-se "um artefato social" e deixe de ser "uma necessidade biológica".

2. o marco regulatório dos direitos sociais da infância

Ante a tantas modificações na forma de se en-tender o que é a infância, é importante pontuar a forma como a comunidade internacional e o Brasil se mobilizaram para proteger e para imprimir direitos para esta faixa de idade. Ainda hoje milhares de crianças vivem à margem da sociedade e correm o risco, a cada momento, de perder a sua infância real e a simbólica. Para parte delas, não há tempo de crescer, aprender, brincar.

Alice Barros afirma que "a legislação tutelar do menor remonta ao século XIX e encontra sua origem nos países industrializados"9. Inglaterra, França, Alemanha, Itália estabeleceram modificações no sistema de trabalho e a limitação de idade para realizar determinadas atividades. "Na América Latina, afora as disposições restritivas contidas nas Leis das Índias, o Brasil foi o primeiro país que expediu normas de proteção ao trabalho do menor"10.

Para protegê-las, é preciso declarar direitos e exigir a aplicação dos mesmos. Na modernidade, declarações foram feitas em situações revolucionárias. Isso porque, segundo Marilena Chaui (2006, p. 95)...

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