Litigância de má-fé e o direito de defesa

AutorGelson Amaro de Souza
CargoAdvogado
Páginas5-9

Page 5

Introdução

Neste breve ensaio, o que se visa é analisar qual o procedimento a ser adotado para a apuração, reconhecimento e condenação de alguém (parte ou terceiro interveniente) pela ocorrência da litigância de má-fé.

O legislador foi bastante cuidadoso ao tipificar as situações em que se configura a litigância de má-fé, sendo estas bastante claras e perfeitamente compreensíveis. Da mesma forma, cuidou de apontar os malefícios desse comportamento, permitindo ao juiz condenar o litigante de má-fé. Todavia, não apontou qual o procedimento a ser adotado.

Não havendo o legislador indicado qual o procedimento apropriado, restou em aberto esta questão. O juiz não encontra parâmetros na lei processual para instaurar um rito com a finalidade de apurar, reconhecer e condenar o litigante de má-fé. Daí resulta a trágica consequência de se pensar que se pode punir o litigante de má-fé sem procedimento próprio.

A Constituição Federal, sempre que se refere à punição (aplicação de pena), qualquer que seja a sua natureza, penal, civil ou administrativa, exige procedimento formal, com ampla defesa, contraditório e, ainda, o que se chamou de devido processo legal, que, como já me manifestado em outros locais1, nada mais é do que o devido procedimento legal, tendo em vista que todo processo é legal, o que pode ser ilegal é procedimento, ou seja, a forma de conduzir o processo.

A não previsão de um procedimento próprio para a apuração da existência da situação caracterizadora da litigância de má-fé tem levado alguns julgadores a condenar o suposto litigante de má-fé, sem apuração dos fatos em contraditório, com defesa do imputado, e sem observância a nenhum procedimento legal. De regra, é a parte ou o terceiro interveniente surpreendido com a condenação, sem antes ter ao menos sido ouvido. Resta em aberto a seguinte pergunta: como ficam as garantias constitucionais, a do devido procedimento legal (art. 5e, LIV, da CF), do contraditório e da ampla defesa (art. 5e, LV, da CF) e ainda o princípio geral de direito, de que ninguém poderá ser condenado, sem antes ser ouvido?

1. Conceito de litigância de má-fé

A litigância de má-fé deve ser considerada como aquelaatitude tomada por algumadas partes ou por terceiro interveniente (assistente, amicus curiae etc.), que se posiciona contrariamente ao que seria a boa-fé. A relação do artigo 17 do CPC é um excelente instrumental de referência, mas não exaustivo, senão apenas exemplificativo. Anota DOTTI DORIA2que a litigância de má-fé caracteriza-se pelo agir em desconformidade com o dever jurídico de lealdade processual.

A convivência entre seres humanos só poderá, pois, ser considerada bem constituída, fecunda e conforme a dignidade humana quando fundada sobre averdade, como adverte o Apóstolo: "Renunciais à mentira e falai a verdade cada um com o seu próximo." 3

Para o professor THEODORO JUNIOR4, o conceito de litigância de má-fé encontra-se assentado, em nosso sistema normativo, sobre conceitos e noções genéricas e vagas, como sói acontecer com preceitos éticos em geral. Noções como 'lealdade e boa-fé', 'resistência injustificada', 'procedimento temerário' etc. não correspondem a normas precisas, mas regras principiológicas, que mais se apresentam como parâmetros do que como comandos normativos.

Também já se disse que o desrespeito ao dever de lealdade processual traduz-se em ilícito processual, o que por si só já configura a litigância de má-fé, a merecer a aplicação de sanções processuais5. Também, da má-fé do litigante resulta o dever de ressarcir ou reparar6os danos causados à parte prejudicada, nos termos dispostos no artigo 16 do CPC. Assim é que THEODORO JUNIOR7reconhece que, para esse atentado, o órgão judicial está autorizado, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, a aplicar ao responsável a multa até vinte por cento do valor da causa.

Em síntese, tudo que contrariar a boa-fé é má-fé e, se isso se dá dentro do processo, caracteriza-se a litigância de má-fé, que deve ser punida. Enfim, qualquer comportamento da parte no sentido de dificultar ou retardar a aplicação da lei é litigância de má-fé8.

2. Ausência de procedimento legal

O Código de Processo Civil houve por bem tipificar as condutas geradoras da litigância de má-fé (artigos 14 e 17, do CPC), e impôs condenação em multa e em ressarcimento ou reparação de danos, esquecendo-se, no entanto, de prescrever o procedimento a ser adotado para a apuração, reconhecimento da ocorrência de litigância de má-fé e condenação, seja em multa ou em ressarcimento dos danos.Page 6

Em razão da falta de procedimento próprio previsto em lei, abriu-se espaço para que na doutrina fosse considerado possível essa condenação nos mesmos autos do processo em que ocorreu a litigância de má-fé9, sem a necessidade de processo ou procedimento em separado10.

Certo é que o Código de Processo Civil não indicou qualquer procedimento específico a ser seguido para o caso de indícios de litigância de má-fé. Mas o artigo 271 do mesmo CPC aponta pela utilização de procedimento comum, quando não se dispuser de outro específico. O procedimento comum prevê forma de def esa e contraditório antes de proferir decreto condenatório, sob pena de nulidade.

Ancorado nos ensinamentos de Joaquim Canuto Mendes de Almeida, para quem contraditório é "a ciência bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contrariá-los", BATISTA LOPES11conclui: "Dessa sintética definição extraem-se os dois elementos que identificam o contraditório: informação obrigatória e possibilidade de reação."

Diante do nosso sistema constitucional, que assegura o devido procedimento legal12, o contraditório e o direito de defesa, não se vê como afastar deste ensinamento. Em qualquer etapa do processo ou procedimento a parte precisa ser antes informada da imputação, com oportunidade de defesa, para, somente depois, o juiz decidir.

A falta de previsão de procedimento próprio para a aferição, conhecimento e julgamento da litigância de má-fé não pode servir de desculpa para o julgamento sem o respeito aos princípios constitucionais acima referidos13.

Primeiramente, há de se dar conhecimento ao interessado de que o seu comportamento pode se enquadrar nos casos de litigância de má-fé e dar a ele oportunidade de defesa e até produção de prova, se as tiver, para, somente depois julgar a questão incidente14e, se for o caso, aplicar a pena.

Em se tratando de questão incidente, não se pode decidir e condenar alguém sem que antes lhe seja facultada a defesa, em respeito aos princípios constitucionais do devido procedimento legal15, do contraditório e da ampla defesa, estes previstos em nossa Constituição da República. O direito de defesa, além de serum princípio muito antigo, é sempre aceito, conduzindo consigo a máxima de que ninguém poderá ser condenado sem antes ser ouvido16. A condenação por litigância de má-fé, como qualquer outra condenação, exige que antes se conceda ao interessado o direito de defesa, expressão máxima do Estado de Direito.

Hoje, mais do que nunca, deve-se abominar as teses fundamentalistas17e se afastar das vetustas "verdade sabida" e "presunção absoluta"18, devendo sempre antes de condenar ouvir-se a parte interessada.

3. Reconhecimento e condenação por litigância de má-fé

O reconhecimento e a condenação por litigância de má-fé pode se dar a pedido de qualquer interessado ou mesmo por iniciativa própria do juiz, que tem poderes para tomar todas as providências necessárias para impedir atos que possam macular o processo ou o procedimento.

Como restou anotado acima, a lei processual não reservou momento próprio e nem indicou procedimento específico a ser seguido. Disto resulta a dúvida se o juiz deve sempre instaurar um incidente específico para verificar, apurar, julgar e, se for o caso, condenar a parte infratora. A resposta parece afirmativa.

Não instaurando incidente específico para apurar a ocorrência da situação de litigância de má-fé, não se vê como a ela se possa chegar. Não pode o juiz utilizar-se somente dos seus sentidos e disso concluir que já está configurada a litigância de má-fé e, sem mais e sem menos, já ir condenando. Também não pode o juiz tomar por base somente as informações da parte contrária, como parece pensar THEODORO JUNIOR. Este eminente autor ensina que demonstrando o prejudicado a má-fé do adversário poderá pedir a sua condenação incidentalmente19. Não se pode negarque a parte contrária possa pedir. A dúvida é qual o procedimento que se deve seguir em homenagem ao devido procedimento legal e se o juiz pode julgar e condenar uma das partes somente com a alegação feita pela outra parte.

O que se coloca em relevo aqui são as garantias constitucionais do devido procedimento legal20, do contraditório e da ampla defesa21. Quando se trata de matéria criminal, por mais pernicioso que seja o criminoso e por mais que seja hediondo o crime, ninguém pode ser condenado sem o direito de defesa. Por que haveria de ser diferente no processo civil, alguém condenado sem oportunidade de se defender da imputação que lhe é dirigida? Se diante das mais evidentes provas do crime, ainda assim, o criminoso tem o seu direito de defesa, como não garantir ao suposto litigante de má-fé, também, o exercício de seu direito de defesa?

Seria o litigante de má-fé, no processo civil, mais nocivo do que o autor de crimes hediondos? Para este são atendidas as garantias e os direitos...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT