A influência da linguagem na interpretação do direito

AutorRenata Cassia de Santana
CargoMestranda em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Especialista em Direito Tributário pela PUC/SP-COGEAE. Advogada
Páginas220-239

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Introdução

Na graduação aprendemos que o direito é objeto cultural que tem como princípio regular as condutas intersubjetivas por meio da coatividade. Ele é composto de fato, valor e norma, cabendo aos julgadores a sua aplicação para realização da justiça. Simples assim.

Direito era isso. A nós, acadêmicos, cabia a árdua tarefa de decorar o maior número possível de dispositivos legais e de determinados textos doutrinários.

A prática forense, porém, mostrava outra realidade. De nada adiantava memorizar. Em nome da justiça, causas idênticas resultavam em julgamentos divergentes. O que seria, então, justiça? E a segurança jurídica? E a insegurança do próprio acadêmico?

Vários questionamentos. Pouco repertório científico, entretanto, para a formação de um movimento tendente a alterar o pensamento jurídico. Com isso, não havia outro meio que não o de se render às decisões postas.

Felizmente, há hoje excelentes cursos, como o de Teoria Geral do Direito, promovido pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET), que, difundindo ensinamentos sobre linguagem e método, desperta no aluno esta possibilidade de mudança - preparo fundamental para o aproveitamento no Mestrado das aulas de Linguagem Jurídica e Constructivismo Lógico-Semântico, muito bem ministradas pela Professora Doutora Fabiana Del Padre Tomé.

Chamados agora à prova, por meio desta monografia, e cientes de que ela será o ponto de partida para a dissertação, analisaremos o intérprete do mundo ocidental contemporâneo (do século XVIII aos dias atuais). Para tanto, levaremos em conta fatores históricos e filosóficos, a linguagem e o direito.

Ao final dos três capítulos concluiremos se o intérprete realmente altera a realidade jurídica e como isso repercute na sociedade.

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1. O intérprete do século XVIII
1. 1 Fatores históricos e filosóficos

O século XVIII foi marcado por dois acon tecimentos históricos: a Revolução Fran -cesa e a Revolução Industrial.

Ambos tiveram como resultado a subs-tituição do poder hereditário dos reis e dos nobres pela autoridade de políticos, magistrados ou chefes executivos eleitos pelos governadores.

Nesta época se destacou o filósofo fran-cês Montesquieu (1689-1755) e sua obra O Espírito das Leis, publicada em 1748. Nela o autor defendeu a separação dos poderes do Estado em Legislativo, Executivo e Judiciário, pois somente assim o cidadão seria livre perante o Estado, que não poderia reunir em uma só pessoa os poderes de legislar e de julgar.

Montesquieu, por sua vez, foi inspirado pelo filósofo inglês John Locke (1632-1704), também iluminista, considerado o principal representante do empirismo britânico e um dos principais teóricos do contrato social.

Locke rejeitou a doutrina das ideias inatas e afirmou que todas elas tinham origem no que era percebido pelos sentidos. Tanto que escreveu o Ensaio acerca do Entendimento Humano, onde desenvolveu sua teoria sobre a origem e a natureza de nossos conhecimentos, teoria essa que acabou servindo de fundamento à psicanálise, tão explorada a partir do século XIX, especialmente pelo psicanalista austríaco Sigmund Freud.

Outro entusiasta das divisões que exerceu importante infiuência sobre o intérprete do século XVIII foi o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804).

Kant, idealista transcendental, tinha como principal argumento a inexistência de uma base para conhecermos o mundo exterior como ele realmente é, em vista da sua divisão entre objetos sensíveis (fenômeno) e objetos

inteligíveis (númeno1/coisa em si). Essa divisão do mundo ofereceu a objetividade necessária ou o corte epistemológico necessário para empregarmos um olhar científico sobre o direito, dissociado da moral e da religião.

Era tudo o que a burguesia precisava, em especial na França.

Destacamos a França porque o país vivia um período de crise financeira e convulsão social dos mais relevantes.

Para se ter uma noção, em termos tributários, o Terceiro Estado (burgueses, proletários, artesãos e camponeses sem terra) era o único sujeito à arrecadação. O clero e a nobreza, além de viverem à custa de pensões e cargos públicos, eram isentos de tributação.

Tratando-se de uma classe descontente, mas que havia conseguido acumular riquezas e o apoio dos menos favorecidos com o bordão iluminista "Liberdade, Fraternidade e Igualdade", do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau, a burguesia fez eclodir a Revo-

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lução Francesa, em 1789, que durou dez anos, até que o poder se estruturasse em suas mãos.

Logo no início da Revolução, a burguesia utilizou como justificativa à tomada do poder a "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão", de agosto de 1789 - texto legal de 17 artigos, inspirado na Revolução Americana de 1776 ou Guerra da Independência dos Estados Unidos, e que serviu de modelo às Constituições democráticas. Até que em 1804, após a Revolução, surgiu o Código Civil Napoleônico como um modelo legal para o estabelecimento da alta burguesia no poder. Dizemos alta burguesia porque depois da Revolução os menos abastados que engrossavam os discursos foram preteridos.

Na Inglaterra as mudanças também foram expressivas. Era o país que mais despontava economicamente. A taxa de juros no final do século XVIII era de cerca de 5% ao ano para os ingleses, enquanto que na China, por exemplo, onde praticamente não existia progresso econômico, a taxa de juros era de cerca de 30% ao ano.

Ajudava também o fato de ter firmado alguns acordos comerciais vantajosos com outros países. Um desses acordos foi o Tratado de Methuen, celebrado com Portugal, em 1703, que permitiu aos ingleses a comercialização de seus produtos no mercado português com taxas preferenciais.

Além disso, a Inglaterra possuía grandes reservas de ferro e de carvão mineral em seu subsolo, principais matérias-primas utilizadas neste período e dispunha de mão de obra em abundância desde a Lei dos Cercamentos de Terras, que provocou o êxodo rural, em vista da transformação das terras comuns aos senhores e aos servos em pastos para ovelhas. Contribuiu também o fato de a Inglaterra ter se inclinado à Reforma Protestante, enfraquecendo o poder da Igreja Católica.

Acrescente-se o egoísmo característico do capitalismo liberal, estimulado pelas ideias do pensador escocês Adam Smith (1723-1790), em A Riqueza das Nações (1776), que fez com que a sociedade pensasse que quando uma pessoa buscava o melhor para si, toda a sociedade era beneficiada, cabendo ao Estado intervir o mínimo possível sobre a economia.

Com todo esse aparato, a Inglaterra foi palco de importantes avanços tecnológicos, como a máquina a vapor, o que, aliado à estabilidade econômica e à urbanização, fizeram com que o país encabeçasse a Revolução Industrial.

1. 2 A linguagem

Refietindo os impulsos iluministas e ainda sob a infiuência da filosofia cartesiana e do ideal mecanicista de Newton, a lingua-gem do século XVIII manteve-se racional.

Prova disso foi o projeto ousado do filósofo alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716), que, apoiado em métodos matemáticos, pretendia conferir à linguagem uma perfeição que nem mesmo a matemática gozaria, como se pudesse existir uma lingua-gem simbólica universal.

A obstinação foi tanta que ele estudou línguas antigas para encontrar um princípio metodológico que pudesse refutar a ideia de que todas as línguas derivavam do hebraico. Paralelamente, ele buscou um sistema genealógico, segundo o qual as línguas da Europa e da Ásia - e mesmo as da África e da América - derivavam de um protótipo comum.

Diante das dificuldades práticas, sua teoria nunca se efetivou.

Outro pesquisador das línguas e importante para o século XVIII foi o filologista inglês William Jones (1746-1794). Segundo ele, haveria uma raiz comum entre os textos sagrados do hinduísmo (Vedas), o grego e o latim.

Tudo isso serviu de apoio para a construção de uma gramática comparada.

De outro lado, havia filósofos como o italiano Giambattista Vico (1668-1744), que ofereciam à linguagem uma visão menos racional.

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Vico, dividindo a história da humanidade em três etapas: teocrática (temor religioso), heroica (sociedade aristocrática) e democrática (estágio racional), asseverou que essas etapas seriam cíclicas, que o homem chegaria ao apogeu e que, corrompendo-se, retornaria à barbárie.

Mais tarde esta linha de pesquisa se tornaria uma das bases para o desenvolvimento do Romantismo.

Com isso percebemos que os estudiosos da linguagem tinham como foco o aspecto sintático das palavras, a sintaxe, não havendo ainda um método para avaliar a semântica e a pragmática. Até mesmo porque havia a crença de que pela gramática comparada se conheceria a cultura de outros povos, base essencial para a ideologia do século seguinte.

1. 3 O Direito

Diante de tanta agitação e da necessi-dade do estabelecimento do poder da burguesia, o direito pós-Revolução Francesa foi construído sobre uma base literal, pouco fiexível em termos de interpretação, resultando no Código Civil Napoleônico de 1804.

Para mascarar seu viés impositivo, surgiu a Escola da Exegese, que pregava que o aplicador deveria seguir a vontade do legislador.

Assim, os juízes codicistas iam deixando o racionalismo cartesiano da prova legal de lado para julgar as causas de acordo com a letra da lei.

Na Inglaterra a condução do direito foi bem diferente. Não havia um Código. O direito se fundava em algumas consolidações de leis existentes (consolidations). Isso era refiexo do common law (direito jurisprudencial que se sobrepunha à lei).

Com base nestes dois modelos os países do ocidente iam se...

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