A não incidência do dpi sobre operações com mercadorias furtadas ou roubadas no trajeto entre o estabelecimento fabricante e o comprador

AutorJosé de Castro Meira
Páginas39-58

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I Introdução

A questão a ser examinada consiste em definir se há, ou não, incidência do IPI sobre produtos que, saídos do estabelecimento industrial, são furtados no caminho para a entrega, antes de serem colocados à disposição do comprador.

No campo do Direito Privado, o furto de mercadorias antes da tradição constitui hipótese típica de caso fortuito ou força maior, semelhante ao que ocorre coma inutilização ou deterioração da coisa, que impossibilita, total ou parcialmente, o cumprimento da obrigação assumida pelo vendedor.

Na sistemática do Código Civil, o contrato de compra e venda é de natureza obrigacional, e não real, já que apenas cria para o vendedor o dever de alienar o domínio de certo bem móvel e para o comprador o de pagar o preço ajustado. No art. 62G está expresso que "o domínio da coisa não se transfere pelos contratos antes da tradição".

Assim, o contrato de compra e venda de coisas móveis tem eficácia meramente obrigacional. A eficácia real, traduzida na transferência do domínio, depende da prática de outro ato jurídico, a tradição. Antes da entrega da coisa, o comprador pode apenas agir como credor da entrega, mas não como proprietário do bem a ser entregue, que continua na esfera de titularidade do vendedor, até que a tradição se efetive.

Em conseqüência, os riscos de pere-cimento da coisa alienada correm sempre por conta do vendedor até que a tradição se concretize, passando ao comprador após este momento. O art. 1.127 do Código Civil bem traduz a conclusão quando enuncia: "até o momento da tradição, os riscos da coisa correm por conta do vendedor e os do preço por conta do comprador". :

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Nesses termos, havendo furto ou roubo de mercadorias, antes da entrega, os riscos são, em regra, do vendedor, quer tenha ocorrido o evento dentro do estabelecimento (furto ou roubo interno), quer tenha acontecido fora dele, no transcurso entre a saída do estabelecimento e a entrega ao comprador (furto ou roubo externo).

Se o furto ou roubo como casos fortuitos ou de força maior não geram maiores dúvidas no plano do Direito Privado, já o mesmo não ocorre na esfera do Direito Tributário.

Segundo o art. 46, II, do CTN, materializa-se o fato gerador do IPI com a saída do produto do estabelecimento industrial, o que inegavelmente ocorre no caso do furto ou roubo externo.

Na esteira desse regramento, questiona--se: a saída do estabelecimento industrial cria a obrigação tributária de pagar o IPI em termos definitivos e irreversíveis, independentemente das ocorrências externas que podem afetar a operação mercantil ensej adora da saída?

Na situação ora examinada, há saída lícita, em tese, geradora da obrigação de pagar o IPI, diferentemente do que ocorreria se as mercadorias tivessem sido furtadas, ou roubadas, de dentro do estabelecimento fabricante. Não se trata, pois, de saída física criminosa - que não tipifica a hipótese de incidência tributária -, mas de saída jurídica embasada em contrato de compra e venda mercantil, cuja entrega tornou-se impossível por fato alheio à vontade dos contratantes.

A questão não é nova no Superior Tribunal de Justiça. No julgamento do Recurso Especial n. 734.403-RS, no qual fiquei vencido, a Segunda Turma decidiu que os fatos ocorridos após a saída do produto do estabelecimento produtor são irrelevantes para fins de incidência do IPI.

Essa orientação fundou-se na constatação de que o fato gerador do IPI é a saída do estabelecimento industrial, de tal modo que eventos ocorridos posteriormente a esse momento não são suscetíveis de impedir, modificar ou extinguir a obrigação tributaria, que já estaria constituída de modo definitivo e irreversível.

Com a devida vênia e as escusas de praxe, não me parece correta a conclusão por quatro razões, examinadas na seqüência.

II O elemento material da hipótese de incidência do IPI

A doutrina é hoje quase unânime em sustentar que o fato gerador do IPI não é a saída do produto do estabelecimento industrial ou a ele equiparado. Este é apenas o elemento temporal da hipótese de incidência, cujo aspecto material consiste na realização de operações que transfiram a propriedade ou posse de produtos industrializados.

Geraldo Ataliba e Cleber Giardino afirmam, com convicção, que a saída do estabelecimento é apenas o elemento temporal da hipótese de incidência do IPI, não se confundindo com seu aspecto material, que são as operações translativas de propriedade e posse de produtos industrializados:

"E, em princípio, hipótese de incidência do IPI o fato de um produto, sendo industrializado, sair de estabelecimento produtor, em razão de um negócio jurídico translativo da posse ou da propriedade do mesmo. Esta definição é jurídica e se despreocupa quer dos ângulos econômicos, do fenômeno subjacente, quer da motivação do legislador ou seus desígnios. Analisemo-la: a) fato = acontecimento localizado no tempo e no espaço, que modifica a realidade das coisas, porque lhe acrescenta (ou suprime) algo nela existente; b) de um produto = produto é a coisa que se obtém como resultado de um processo de produção, processo esse que é real e concreto e se dá no mundo fenoménico, mas que -para efeito jurídico - deve ser legalmente qualificado; c) sendo industrializado = forma enfática de sublinhar que não é qualquer coisa que pode ser considerada produto industrializado, mas só o que, de acordo com a lei, resulta finalmente de uma série de operações mecânicas, físicas e concretas, que caracterizam a industrialização, tal como legalmente

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qualificada; d) sair = a saída não é a materialidade da hipótese de incidência. É meramente seu aspecto temporal. A saída é o momento qualificado pela lei como de consumação do processo concreto que redunda na obtenção (produção) do produto. É erro lógico e conceituai grave supor que 'saída' seja hipótese de incidência de qualquer tributo. E mero aspecto temporal, quer do ICM (v. Souto Maior Borges, RDA 103), quer do IPI; e) do estabelecimento produtor = a essência da materialidade da hipótese de incidência do IPI está na dinâmica, em si, do fato de o produto sair de uma origem juridicamente qualificada: o 'estabelecimento', onde ocorre o processo concreto (conjunto de operações mecânico--físicas) que redundou no produto final; f) em razão de um negócio jurídico = não é toda e qualquer saída que consuma - como o quer a lei - o processo industrial. Não é qualquer saída que faz presumir a conclusão do ciclo econômico, considerado pelo legislador como unidade fática materialmente tributável, mas só a saída de produto que tenha sido objeto de um negócio jurídico".1

Eduardo Domingos Bottallo, no mesmo caminho, assim define a regra matriz,de incidência do IPI:

"O IPI incide sobre operações jurídicas praticadas com produtos industrializados. Nos termos da Constituição, ele deve ter por hipótese de incidência o fato de alguém industrializar produto e levá-lo para além do estabelecimento produtor, por força da celebração de um negócio jurídico translativo de sua posse ou propriedade.

-(...).

"Voltando ao ponto principal, reafirme--se, conforme já tivermos oportunidade de acenar linhas acima, que não basta ocorrer a industrialização de um produto, para que o IPI seja devido.

"Por igual modo, é insuficiente que o produto industrializado saia do estabelecimento produtor.

"Na verdade a obrigação de pagar IPI se aperfeiçoa apenas quando a saída do produto industrializado seja causada por um negócio jurídico.

"(...).

"Em resumo, o IPI só é devido quando ocorrer o fato de um produto industrializado sair do estabelecimento produtor (estabelecimento industrial ou a ele equiparado), em razão de negócio jurídico real ou ficto, translativo de sua posse ou propriedade."2

Leandro Paulsen traz a seguinte observação:

"Vale ressaltar, contudo, que se impõe a saída por força de uma 'operação' com produto industrializado, como visto quando da análise da base econômica, ou seja, por força de um negócio jurídico. As saídas sem tal pressuposto não dão ensejo, a rigor, à incidência do IPI.

"(...)

"José Eduardo Soares de Mello afirma que, no IPI, a obrigação tributária decorre da realização de 'operações' no sentido jurídico (ato de transmissão de propriedade ou posse), relativo a um bem anteriormente elaborado (esforço humano que consistiu numa transformação ou criação de uma nova utilidade). A obrigação consiste num 'dar o produto industrializado', pelo próprio realizador da operação jurídica. Embora este, anteriormente, tenha produzido um bem, consistente em seu trabalho pessoal, sua obrigação principal consiste na entrega desse bem, no oferecimento de algo corpóreo, materializado, que não decorra de encomenda específica do adquirente."3

Misabel Derzi, ao rever e atualizar, à luz da CF/1988, a obra de Ahornar Baleeiro, argumentou o seguinte: "A grande maioria dos doutrinadores entende inexistir fato jurídico tributário pela simples saída física

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dos produtos industrializados (fenômeno que também ocorre no ICMS). A operação que gera a saída do produto industrializado corresponde sempre a ato ou negócio jurídico translativo da posse ou da propriedade (cf. Américo Masset Lacombe, 'Imposto sobre Produtos Industrializados', in RDT, vol. 27, p. 28, pp. 117-119; Paulo de Barros Carvalho, 'Imposto sobre Produtos Industrializados', in Curso de Direito Empresarial, vol. II, pp. 149-150). Registra, com propriedade, José Roberto Vieira: 'o IPI não só não grava a industrialização, como também não atinge diretamente os produtos industrializados, tributando, na verdade, as operações que têm por objeto produtos advindos de industrialização'".4

Rubens Gomes de Sousa assevera que o IPI"(...) passara a ser sobre circulação de mercadorias em fase de produção, guardando...

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