Cidadania e nacionalidade em Habermas: aportes conceituais

AutorDaniela Mesquita Leutchuk de Cademartori
Páginas77-88

Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori. Mestre e doutora em Direito pela UFSC, pós-graduação (lato sensu) em fundamentos de epistemologia pela UNISC e graduação em Direito e em História pela UFSM. Atualmente é docente permanente da Universidade do Vale do Itajaí e do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina, professora da Especialização em Ciência Jurídica da UNIVALI (mestrado e doutorado), editora da revista Novos Estudos Jurídicos do CPCJ-UNIVALI, conselheira editorial do Centro de Pesquisas Oncológicas, consultora externa da Universidade Norte do Parana.

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1 Considerações Iniciais

Pode-se observar que a noção de cidadania tem, através dos tempos, mantido sua força, designando o vínculo jurídico que une as diferentes formas de organização política a seus membros, cabendo assim à teoria dos direitos fundamentais organizar seus diferentes significados. Como a partir da modernidade essa noção passou a designar o vínculo jurídico de pertencimento a um Estado de Direito aludindo especificamente aos direitos políticos ou de participação imediata de seus titulares na vida estatal - pretende-se aqui analisar os limites e possibilidades de sua permanência como “marco de referência” para a participação democrática nos processos jurídico-políticos de um Estado de Direito que pretende ultrapassar as fronteiras do estrito nacionalismo.

Três categorias jurídico-políticas condicionam-se e implicam-se mutuamente, tendo emergido no mesmo ambiente histórico: cidadania, direitos fundamentais e Estado de Direito. É o Estado de Direito a forma política na qual os poderes atuam divididos e submetidos ao império da legalidade que garante os direitos fundamentais e a cidadania. Já os direitos fundamentais são o fundamento de legitimidade do Estado de Direito e o conteúdo da cidadania. E, por último, a cidadania é o espaço de participação política no Estado de Direito, através do exercício dos direitos fundamentais.

A análise do processo de ampliação da cidadania deixa evidente o caráter de construção e de luta por direitos, caráter esse que se configura em seu conceito contemporâneo. Na atualidade, se por um lado, ela é um conjunto de direitos civis, políticos e sociais, por outro, um sentimento comunitário de participação e, portanto, significa a exclusão dos integrantes que não comungam com esses sentimentos. Se todo cidadão necessariamente é membro de uma comunidade específica - seja qual for a sua organização - tal pertencimento é fonte de obrigações, ao mesmo tempo em que é também lócus de reivindicação de direitos. No cerne do conceito de cidadania subjaz seu caráter público e impessoal, de espaço e meio no qual conflitam aspirações e desejos dos grupos sociais, transformados em ações coletivas, que integram a comunidade, tendo como objeto a construção de projetos futuros.

A análise histórica e conceitual da relação entre cidadania e nacionalidade, bem como dos aportes teóricos ao tema de Habermas – objeto deste artigo – se convertem em um pretexto para o esclarecimento de alguns pontos de vista normativos, a partir dos quais se pode compreender melhor a complexa relação estabelecida entre a cidadania e a identidade nacional.

Uma tal análise, acaba por perceber que o debate em torno do tema sofreu uma nova guinada com acontecimentos tais como a “Queda do Muro de Berlim” (1989) e os subseqüentes, ocorridos no Leste Europeu. Se a democratização do Estado teve como base a homogeneidade cultural e étnica propiciada pelo Estado-nacional, a atual perda dos significados pré-políticos que revestem esse Estado poderia apontar para um enfraquecimento desse fenômeno? Se a resposta não pode ser dada sem que se incida em futurologia – e conforme Bobbio, o ofício do profeta é perigoso1 – desde já é possível constatar que a dissolução da forma clássica do Estado nacional também acarreta a dissolução das chaves semânticas que definem a cidadania e a identidade nacional.

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2 A Cidadania em uma Perspectiva Conceitual

Antonio- Enrique Pérez Luño menciona a existência, no interior das teorias analítico-lingüísticas sobre a cidadania, das definições lexicais2. Nesta perspectiva, considerando a definição de cidadania, é possível perceber os seguintes pares: descritivo e prescritivo, teórico e pragmático, natural e político, global e local, universal e particular e os pares unilateral e multilateral. (2002, p. 162)

Definições descritivas de cidadania são aquelas adotadas pelos constitucionalistas e administrativistas, pelas quais ela pode ser traduzida num conjunto de normas que regulam o status jurídico dos cidadãos. Sendo assim, a categoria emana do direito positivo estatal e para sua definição contribuem a análise empírica e a exegese deste setor normativo do ordenamento jurídico.

Por outro lado, definições prescritivas são aquelas em que a noção reveste-se de um significado deontológico, enquanto modelo ideal de status que deveria ser reconhecido aos membros da sociedade política3.

A utilização teórica da noção de cidadania é concretizada através dos aportes doutrinais multidisciplinares da filosofia, do direito, da sociologia, etc., enquanto a intencionalidade pragmática é percebida naqueles que invocam a mesma como bandeira de luta na consecução de determinadas liberdades. A última situação pôde ser percebida no movimento em favor dos direitos civis na segunda metade do século passado ou mesmo na luta contra o apartheid. Importa salientar que a versão teórica da cidadania não exclui sua possível dimensão pragmática. (PÉREZ LUÑO, 2002, p. 162, 181)

A contraposição entre as definições naturais e políticas de cidadania deriva da diferenciação produzida pelos primeiros tipos de definição. Elas surgem a partir das teorias contemporâneas de orientação comunitarista que concebem a cidadania como um fator inato e necessário que determina a inserção do indivíduo em um grupo étnico e/ou cultural4. Conseqüentemente, tais definições opõem-se às concepções liberais – tais como a de John Rawls - que a percebem como um conceito estritamente político, isto é, um vínculo decorrente da relação contratual (pacto social) e da adesão livre das pessoas à sociedade.

Para Pérez Luño, a acepção natural de cidadania, tem como pressuposto ideológico e se inscreve na tradição nacionalista herderiana, enquanto o ideal político de cidadania sustentado pelo pensamento liberal tem como antecedente o humanismo cosmopolita kantiano5.

Por seu turno, a percepção global de cidadania é sustentada por aqueles que a concebem como o conjunto de todos os direitos fundamentais, uma noção que compreende não só os direitos civis e políticos como também os econômicos, sociais e culturais6. Como para um amplo setor da doutrina juspublicista a cidadania possui uma significação limitada - ficando circunscrita a seu sentido técnico-jurídico implicado pela determinação da qualidade de cidadão ou do vínculo de pertencimento a uma determinada organização política e os conseqüentes direitos de participação democrática - é possível opor à definição global uma definição local da mesma7.

É possível também apontar, em determinadas teorias, a proposta de uma cidadania tão ampla a ponto de fazê-la coincidir com um status universal8.

En estas versiones, de inequívoca impronta cosmopolita ligadas al proyecto humanista de la modernidad, se proyecta un modelo de ciudadanía que haga posible una universales civitatis en la que se consagre plenamente el auspiciado status mundiales hominis. (PÉREZ LUÑO, 2002, p. 180)

Este último significado apresenta uma grande afinidade com a noção política, sendo incompatível com a sua acepção natural. (PÉREZ LUÑO, 2002, p. 181)

Por outro lado, são mais freqüentes as concepções particulares da cidadania, a começar pela tradição doutrinária do direito público que a faz coincidir com idéia de pertencimento a um Estado.

Incluso en algunos estudios de Derecho municipal, se aboga por limitar, todavía más, el ámbito espacial de la ciudadanía. […] se hace coincidir, en función de lo que su propia raíz terminológica evoca, la ciudadanía con la adscripción a la ciudad. […] En los últimos años, se aprecia la tendencia a acentuar la vecindad civil como presupuesto básico para el ejercicio de los derechos cívicos (Rivero, 1993). (PÉREZ LUÑO, 2002, p. 180-181)

Se por muito tempo o uso lingüístico do termo cidadania fazia referência a um vínculo único e exclusivo entre o indivíduo e o Estado, nas circunstâncias atuais é possível admitir uma pluralidade de cidadanias. Em outros termos, substituir a cidadania unilateral por uma cidadania multilateral.

El reconocimiento del desbordamiento político y jurídico del Estado a través de los fenómenos de ‘supraestatalidad’ (supeditación del Estado a organizaciones internacionales) y de ‘infraestatalidad’Page 79 (asunción de competencias jurídico-políticas por entes menores que el Estado) (Pérez Luño, 1993), invita a admitir ese uso lingüístico multilateral de la idea de ciudadanía. (PÉREZ LUÑO, 2002, p. 181)

Cabe lembrar que esta classificação não é estanque, sendo possíveis usos lingüísticos descritivos da cidadania, ao mesmo tempo que teóricos, políticos, globais, universais e multilaterais.

A fim de que a cidadania não sofra uma diminuição em sua função jurídico-política e na sua capacidade de potencializar a participação democrática nos atuais Estados de Direito, a análise lexical precisa ser completada pelas análises explicativas9. Uma das manifestações destas definições – ao lado da sistemática10 - é a histórica. Ela indaga sobre a evolução diacrônica dos termos nos momentos mais decisivos para a conformação de seus significado...

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