Murilo, o surrealismo e a religião

AutorRaúl Antelo
Páginas4-17
MURILO, O SURREALISMO E A RELIGIÃO
Raul Antelo1
O recente centenário de Murilo Mendes nos forneceu a ocasião para avaliar de
que modo se vinculam, em sua obra, poesia, religião e modernidade 2. Creio, em
poucas palavras, antecipando o argumento que pretendo desenvolver, que em Murilo
Mendes podemos encontrar uma posição eqüidistante entre, de um lado, o cristianismo
escriturário, e sua crença de uma verdade única, ainda que essa singularidade esteja
igualmente aberta à indeterminação dos sistemas significantes e, de outro, o relativismo
hermenêutico, que rechaça a idéia de que possa haver uma verdade final e definitiva.
Porém, para poder demonstrar esta minha hipótese, torna-se necessário uma análise do
ambiente cultural em que Murilo elabora seus conceitos a respeito de religião e
literatura, reconstruindo, notadamente, o debate que, mesmo na Europa de entre-
guerras, suscitavam estas questões.
* * *
Não existe precedente do capitalismo, no sentido que é uma religião que não
oferece a reforma da existência mas a sua completa destruição. (…) O
capitalismo é uma religião de puro culto, sem dogma.
Walter Benjamin — O capitalismo como religião (1921)
Para tanto, situemo-nos, de início, em Paris, no primeiro sábado de janeiro de
1938. Depois de uma série de apresentações sobre as seitas e a solidão dos animais
(Caillois) ou sobre o sacrilégio (Bataille), duas formas de debater a condição do
sagrado, um etnógrafo, Michel Leiris, há pouco retornado de expedição a Dakar,
sensibiliza a platéia do Colégio de Sociologia falando sobre o sagrado na vida cotidiana.
Nessa conferência, ele define o sagrado como um heterogêneo ambíguo de que somos
todos cúmplices, o que equivale, portanto, a ver o sagrado como um espaço onde impera
a inclusão polêmica muito mais do que o simples antagonismo dialético.
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1 Doutor em Literatura Brasileira. Professor da UFSC.
2 Esta reflexão foi, inicialmente, apresentada no colóquio “Poesia: passagens e impasses” (Universidade
Federal de Santa Catarina, dez. 2001).
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