Mundo do trabalho entre passado e futuro: das greves de 1978/1980 à assembleia nacional constituinte de 1987/1988

AutorCristiano Paixão
Páginas36-43

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Uma constituição é sempre fruto de um processo constituinte. Caso se trate de uma constituição redigida num período democrático, pressupõe-se a existência de um órgão político encarregado da redação de um documento constitucional - normalmente uma assembleia constituinte. Há, contudo, duas acepções dessa expressão, que denotam experiências temporais diversas. O primeiro significado envolve a duração do processo em si, ou seja, ele equivale ao período de atividade da assembleia constituinte. A duração está contida num intervalo de tempo definido e que pode ser identificado: o processo se inicia com a instalação dos trabalhos da assembleia e se conclui com a promulgação do texto. Mas há também outra perspectiva em que pode ser compreendida a expressão "processo constituinte": a experiência do passado pré-constituinte, ou seja, a dinâmica dos processos históricos (em suas diversas durações) que antecedem - e estimulam - a convocação de um órgão destinado a redigir a Constituição.

Ambos os significados, portanto, comportam durações diversas. No caso brasileiro, se for utilizado o primeiro sentido da expressão, torna-se possível fixar o período em que se desenvolveu o processo constituinte: de 1º de fevereiro de 1987 (data da sessão de instalação da Assembleia Nacional Constituinte convocada pela Emenda Constitucional n. 26, de 1985) a 5 de outubro de 1988 (dia da promulgação, em sessão solene da Assembleia, da nova Constituição da República). Em relação à segunda acepção, há maiores dificuldades. Como estabelecer o período de preparação para a Constituinte? Ele coincide com a transição política? A partir de qual momento, na história política brasileira dos anos de 1970 a 1980, é possível afirmar que havia condições concretas de elaboração de uma constituição democrática?

Não é objetivo do presente artigo propiciar respostas exaustivas a essas indagações, o que exigiria um trabalho de outra dimensão e com inúmeras dificuldades metodológicas. O que se pretende expor, nas linhas que se seguem, é um aspecto central para a compreensão do processo constituinte brasileiro (em sua dupla acepção) que culminou com a promulgação da Constituição da República hoje vigente: a participação dos trabalhadores nas lutas sociais e demandas políticas que acabaram por demonstrar o esgotamento do projeto autoritário inaugurado em 1964 e abriram o caminho para a elaboração de uma constituição democrática e plural. A hipótese da pesquisa aqui desenvolvida é simples: trata-se de ressaltar a centralidade do mundo do trabalho - e de seus principais atores, os trabalhadores, em suas diversas formas de organização no plano coletivo - para o processo de transformação política e constitucional que ocorreu na década de 1980 no Brasil.

1 978-1980: novos atores em cena

Depois da decretação do Ato Institucional n. 5, em 13 de dezembro de 1968, a ditadura militar no Brasil ingressava na sua fase mais violenta. Em 1969, sucederam-se cassações de políticos, negou-se a posse do vice-presidente, um civil, diante da grave enfermidade que assolou o general-presidente de plantão. Então, uma junta militar assumiu o poder e outorgou, com o Congresso Nacional fechado, uma Emenda Constitucional que se coloca, em verdade, como uma nova constituição, em substituição à de 1967, feita às pressas por

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um Legislativo mutilado, com observância aos termos do projeto enviado pelo Executivo.

Com a organização da repressão numa estrutura "profissional", com células semiautônomas que tinham grande margem de liberdade para agir (inclusive com o uso sistemático da tortura), as pálidas tentativas de resistência foram aniquiladas. O movimento estudantil foi atacado frontalmente, apenas um partido político de oposição era "consentido" pelo regime e as organizações de resistência (com ou sem o recurso à luta armada ou não, situada no contexto urbano ou rural) foram sendo gradativamente derrotadas pelas forças da repressão.

Em março de 1974, o general-presidente Ernesto Geisel anuncia a política de "abertura lenta, segura e gradual" do regime. Tratava-se de iniciar os passos para a transferência do poder aos civis. Como seria de se esperar, não estava em curso um processo de redemocratização. O que o regime postulava era o controle da transição. Para que isso ocorresse, era necessário eliminar todos os focos de resistência. Mesmo depois da chegada de Geisel ao poder, continuaram as violações a direitos humanos, como torturas, execuções e desaparecimentos. Para que a transição "pelo alto" fosse bem-sucedida, era crucial inviabilizar qualquer movimento da sociedade civil.

O quadro não era, portanto, propício para a entrada de novos personagens em cena. Porém, foi exatamente isso que aconteceu.

Ainda que se trate de um processo gradativo, com inúmeras manifestações e/ou atitudes de resistência que ainda merecem ser pesquisadas em profundidade, o fato é que o ingresso dos novos atores em cena (expressão cara a Eder Sader, em obra importante sobre o período2) ocorreu em maio de 1978, quando houve a primeira onda de greves nas indústrias do setor automotivo no chamado ABCD paulista. O acontecimento inicial foi a greve da Saab-Scania, desencadeada no dia 12 de maio3.

Uma das razões pelas quais houve uma enorme surpresa inicial foi a originalidade do movimento. Tendo sido construída de forma espontânea, a greve da Saab-Scania não passou por nenhum filtro institucional (nem mesmo o do sindicato profissional). Foi uma ação direta, que gerou enorme repercussão e desencadeou uma paralisação de grandes proporções. Não é demasiado recordar que, ao tempo em que foi desencadeada a greve, era uma opção que trazia algum risco. Havia uma dificuldade entre os trabalhadores em recorrer à greve naquele contexto político, por duas razões, ambas ligadas ao regime ditatorial.

Em primeiro lugar, havia a Lei n. 4.330, de 1º de junho de 1964. Como se percebe pela data de publicação, tratava-se da lei editada pelo regime militar (que estava apenas há sessenta dias no poder) para conter e praticamente impossibilitar o exercício do direito de greve. O procedimento estipulado pela lei para deflagração da greve era complexo e lento; o controle estatal era contínuo; e havia inúmeras restrições para atividades consideradas essenciais. Além disso, ele estipulava vários crimes contra a organização do trabalho, e entre eles estavam "promover, participar ou insuflar greve ou lockout com desrespeito a esta lei". A pena prevista era reclusão de seis meses a um ano e multa pecuniária. Para a reincidência, a pena deveria incidir em dobro.

Não por acaso, o diploma legal ficou conhecido, entre os trabalhadores, como "lei antigreve", pois, em termos práticos, ele inviabilizava todo tipo de paralisação legal. Para tornar ainda mais restrita uma disciplina que já era bastante rígida, a Constituição de 1967 simplesmente proibiu a greve em atividades essenciais e nos serviços públicos. Por sua vez, o Decreto-Lei n. 314/1967 estabeleceu que "Promover greve ou lockout, acarretando a paralisação de serviços públicos ou atividades essenciais, com o fim de coagir qualquer dos Podêres da República" era crime contra a segurança nacional, punível com reclusão de dois a seis anos.

E, em segundo lugar, havia a memória da repressão. Em 1968, foram deflagrados dois movimentos grevistas importantes, que tiveram repercussão nacional. Eles ocorreram em Contagem (Companhia Belgo-Mineira) e Osasco (Cobrasma e outras indústrias), em abril e julho. Ambos foram severamente reprimidos pelo regime militar, com ocupação militar das cidades, expulsão dos trabalhadores que resistiam a deixar as fábricas, intervenção do Ministério do Trabalho nos sindicatos e prisão de grevistas.

Por essas razões, nem o regime militar, procurando controlar a transição, poderia imaginar que os trabalhadores, com ou sem a chancela dos respectivos sindicatos, poderiam se constituir como atores sociais e políticos habilitados a ocupar a cena nacional. Como dito por um operário da Scania, ao descrever os dilemas dos trabalhadores às vésperas do movimento: "a palavra greve é que estava difícil de sair."4

A palavra acabaria por ser pronunciada - no sentido performativo - no dia 12 de maio de 1978. Naquela data, os trabalhadores da empresa, num gesto marcado pela espontaneidade e demonstrando grande capacidade de articulação, ingressaram na fábrica (localizada em São Bernardo do Campo), registraram seus respectivos cartões de ponto, postaram-se diante das máquinas e recusaram-se a trabalhar.

Todos foram surpreendidos por essa deliberação - a empresa, o Ministério do Trabalho e até mesmo o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. O pano de fundo da manifestação era a reivindicação de uma reposição salarial

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decorrente da crescente inflação que corroía o poder de compra dos salários na época. Depois de várias tentativas de uma saída negociada para o impasse, e diante da recusa da diretoria da empresa em prosseguir com o diálogo, a operação foi desencadeada às sete horas da manhã do dia 12 de maio. Cem trabalhadores do setor da ferramentaria iniciaram o movimento de paralisação. Em uma semana, os 1.800 trabalhadores da Scania haviam aderido. Em duas semanas, estavam em greve os operários de Santo André, São Bernardo, São Caetano do Sul e Diadema (ABCD).

O movimento foi intenso e marcante. Os números impressionam: num período de nove semanas, compreen-dido entre 12 de maio e 13 de julho de 1978, foram computadas 213 fábricas em greve em nove cidades (além do ABCD, houve paralisações em São Paulo, Osasco, Jandira, Taboão da Serra, Cotia e Campinas). No total, 245.935 trabalhadores entraram em greve. Se forem levados em consideração os dados do ano de 1978 em todo o Brasil, os resultados são os seguintes: quatorze categorias profissionais deflagraram greve naquele ano, em sete...

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