A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida

AutorLuís Roberto Barroso; Letícia de Campos Velho Martel
CargoUniversidade do Estado do Rio de Janeiro/Universidade do Extremo Sul Catarinense
Páginas69-104

Luís Roberto Barroso. Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Professor Visitante da Universidade de Brasília (UnB). Doutor e Livre-Docente pela UERJ. Mestre em Direito pela Yale Law School. Diretor-Geral da Revista de Direito do Estado.

Letícia de Campos Velho Martel. Professora licenciada da Universidade do Extremo Sul Catarinense e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Direitos Humanos e Cidadania (NUPEC/UNESC). Doutoranda em Direito Público na UERJ. Mestra em Instituições Jurídico-Políticas pela UFSC. Pós-Graduanda em Estudios Superiores en Bioética FLACSO/Argentina.

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“E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,

E que o poente é belo e é bela a noite que fica.

Assim é e assim seja”.

Fernando Pessoa, O guardador de rebanhos

Introdução

Um indivíduo não tem poder sobre o início da própria vida. Sua concepção e seu nascimento são frutos da vontade alheia. É o nascimento com vida que marca o início da condição humana efetiva, com a aquisição de personalidade jurídica e da aptidão para ter direitos e obrigações1. O direito à vida constitui o primeiro direito de qualquer pessoa, sendo tutelado em atos internacionais, na Constituição e no direito infraconstitucional. Ao lado do direito fundamental à vida, o Direito contemporâneo – também em atos internacionais e domésticos – tutela, igualmente, a dignidade da pessoa humana. O direito de todos e de cada um a uma vida digna é a grande causa da humanidade, a principal energia que move o processo civilizatório.

Um indivíduo tem poder sobre o fim da própria vida. A inevitabilidade da morte, que é inerente à condição humana, não interfere com a capacidade de alguém pretender antecipála. A legitimidade ou não dessa escolha envolve um universo de questões religiosas, morais e jurídicas. Existe um direito à morte, no tempo certo, a juízo do indivíduo? A ideia de dignidade humana, que acompanha a pessoa ao longo de toda sua vida, também pode ser determinante da hora da sua morte? Assim como há direito a uma vida digna, existiria direito a uma morte digna? O estudo que se segue procura enfrentar essas questões, que têm desafiado a Ética e o Direito pelos séculos afora.

A finitude da vida e a vulnerabilidade do corpo e da mente são signos da nossa humanidade, o destino comum que iguala a todos. Representam, a um só tempo, mistério e desafio. Mistério, pela incapacidade humana de compreender em plenitude o processo da existência. Desafio, pela ambição permanente de domar a morte e prolongar a sobrevivência. A ciência e a medicina expandiram os limites da vida em todo o mundo. Porém, o humano está para a morte. A mortalidade não tem cura. É nessa confluência entre a vida e a morte, entre o conhecimento e o desconhecido, que se originam muitos dos medos contemporâneos. Antes, temiam-se as doenças e a morte. Hoje, temem-se, também, o prolongamento da vidaPage 71 em agonia, a morte adiada, atrasada, mais sofrida. O poder humano sobre Tanatos2.

As reflexões aqui desenvolvidas têm por objeto o processo de terminalidade da vida, inclusive e notadamente, em situações nas quais os avanços da ciência e da tecnologia podem produzir impactos adversos. Seu principal propósito é estudar a morte com intervenção à luz da dignidade da pessoa humana, com vistas a estabelecer alguns padrões básicos para as políticas públicas brasileiras sobre a matéria. Para tanto, investe-se um esforço inicial na uniformização da terminologia utilizada em relação à morte com intervenção. Na sequência, procura-se produzir uma densificação semântica do conceito de dignidade da pessoa humana. Por fim, são apresentados e debatidos alguns procedimentos destinados a promover a dignidade na morte, alternativos à eutanásia e ao suicídio assistido.

As ideias aqui desenvolvidas, como se verá, valorizam a autonomia individual como expressão da dignidade da pessoa humana e procuram justificar as escolhas esclarecidas feitas pelas pessoas. Nada obstante isso, a morte com intervenção, no presente trabalho, não foi confinada a um debate acerca da permissão ou proibição da eutanásia e do suicídio assistido. O refinamento da discussão permite que se busque consenso em torno de alternativas moralmente menos complexas, antes de se avançar para o espaço das escolhas excludentes. O fenômeno da medicalização da vida pode transformar a morte em um processo longo e sofrido. A preocupação que moveu os autores foi a de investigar possibilidades, compatíveis com o ordenamento jurídico brasileiro, capazes de tornar o processo de morrer mais humano. Isso envolve minimizar a dor e, em certos casos, permitir que o desfecho não seja inutilmente prorrogado. Ainda um último registro introdutório: as considerações sobre a morte com intervenção, aqui lançadas, referem-se tão-somente aos casos de pessoas em estado terminal ou em estado vegetativo persistente.

1 Morte com intervenção: os conceitos essenciais

Nos últimos anos3, os estudiosos da bioética têm procurado realizar uma determinação léxica de alguns conceitos relacionados ao final da vida. Muitos fenômenos quePage 72 eram englobados sob uma mesma denominação passam a ser identificados como categorias específicas. Este esforço de limpeza conceitual deveu-se à necessidade de enfrentar a intensa polissemia na matéria, que aumentava, pela incerteza da linguagem, as dificuldades inerentes a um debate já em si complexo. Como intuitivo, facilita a racionalidade da circulação de ideias que se faça a distinção entre situações que guardam entre si variações fáticas e éticas importantes. Em certos casos, as distinções são totalmente nítidas; em outros, bastante sutis. Ainda assim, é conveniente identificar, analiticamente, as seguintes categorias operacionais: a) eutanásia; b) ortotanásia; c) distanásia; d) tratamento fútil e obstinação terapêutica; e) cuidado paliativo; f) recusa de tratamento médico e limitação consentida de tratamento; g) retirada de suporte vital (RSV) e não-oferta de suporte vital (NSV); h) ordem de nãoressuscitação ou de não-reanimação (ONR); e i) suicídio assistido4. Algumas dessas categorias, como se verá, são espécies em relação ao gênero.

O termo eutanásia foi utilizado, por longo tempo, de forma genérica e ampla, abrangendo condutas comissivas e omissivas em pacientes que se encontravam em situações muito dessemelhantes. Atualmente, o conceito é confinado a uma acepção bastante estreita, que compreende apenas a forma ativa aplicada por médicos a doentes terminais cuja morte é inevitável em um curto lapso5. Compreende-se que a eutanásia é a ação médica intencional de apressar ou provocar a morte – com exclusiva finalidade benevolente – de pessoa que se encontre em situação considerada irreversível e incurável, consoante os padrões médicos vigentes, e que padeça de intensos sofrimentos físicos e psíquicos. Do conceito estão excluídas a assim chamada eutanásia passiva, eis que ocasionada por omissão, bem como a indireta, ocasionada por ação desprovida da intenção de provocar a morte. Não se confunde, tampouco, com o homicídio piedoso, conceito mais amplo que contém o de eutanásia. DePage 73 acordo com o consentimento ou não daquele que padece, a eutanásia pode ser voluntária, não-voluntária e involuntária6.

Por distanásia compreende-se a tentativa de retardar a morte o máximo possível, empregando, para isso, todos os meios médicos disponíveis, ordinários e extraordinários ao alcance, proporcionais ou não, mesmo que isso signifique causar dores e padecimentos a uma pessoa cuja morte é iminente e inevitável7. Em outras palavras, é um prolongamento artificial da vida do paciente, sem chance de cura ou de recuperação da saúde segundo o estado da arte da ciência da saúde, mediante conduta na qual “não se prolonga a vida propriamente dita, mas o processo de morrer”8. A obstinação terapêutica e o tratamento fútil estão associados à distanásia. Alguns autores tratam-nos, inclusive, como sinônimos. A primeira consiste no comportamento médico de combater a morte de todas as formas, como se fosse possível curála, em “uma luta desenfreada e (ir)racional”9, sem que se tenha em conta os padecimentos e os custos humanos gerados. O segundo refere-se ao emprego de técnicas e métodos extraordinários e desproporcionais de tratamento, incapazes de ensejar a melhora ou a cura, mas hábeis a prolongar a vida, ainda que agravando sofrimentos, de forma tal que os benefícios previsíveis são muito inferiores aos danos causados10.

Em sentido oposto da distanásia e distinto da eutanásia, tem-se a ortotanásia. Tratase da morte em seu tempo adequado, não combatida com os métodos extraordinários e desproporcionais utilizados na distanásia, nem apressada por ação intencional externa, como na eutanásia. É uma aceitação da morte, pois permite que ela siga seu curso. É prática “sensível ao processo de humanização da morte, ao alívio das dores e não incorre em prolongamentos abusivos com aplicação de meios desproporcionados que imporiamPage 74 sofrimentos adicionais”11. Indissociável da ortotanásia é o cuidado paliativo, voltado à utilização de toda a tecnologia possível para aplacar o sofrimento físico e psíquico do enfermo12. Evitando métodos extraordinários e excepcionais, procura-se aliviar o padecimento do doente terminal pelo uso de recursos apropriados para tratar os sintomas, como a dor e a depressão13. O cuidado paliativo pode envolver o que se denomina duplo efeito: em determinados casos, o uso de algumas substâncias para controlar a dor e a angústia pode aproximar o momento da...

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