A morte do bem jurídico-penal

AutorAntonio Fábio Medrado de Araújo
Ocupação do AutorAssessor de Desembargador (2a Câmara Criminal), Tribunal de Justiça da Bahia, Brasil
Páginas50-75

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Qualquer sistema lastreado em bens jurídicos abriga elementos de instabilidade. Dentre os principais:

• fluidez temporal (cf. Busato e Huapaya, 2007,
p. 33) — o que é bem jurídico hoje provavelmente não o será, ressaltando-o as matizes bio, etno e infojurídicas. A fluidez é um caractere do maneirismo, estágio inicial da arte moderna. Ela antecipou a tendência que, séculos mais tarde, radicou-se como...

[...] síndrome psicológica das sociedades capita-listas. [...] a fluidez não poderia ser inteiramente explicada sem que se vincule esse fenômeno à forma de representação através da qual as sociedades capitalistas legitimam-se a si mesmas [...] Nas sociedades modernas, a representação é um processo puramente sociomórfico; já não é mais uma legitimação da verdade da existência comunal sobre fundamentos meta-históri-

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cos. É, antes, uma exigência para a pacificação negociada entre os indivíduos, para habilitá-los a acomodar seus interesses pessoais. A sociedade moderna não se reconhece como miniatura de um cosmos maior, mas como um contrato amplo entre seres humanos. Assim, a conduta humana se conforma a critérios utilitários que, a seu turno, estimulam a fluidez [...]. Na ver-dade, o homem moderno é uma fluida criatura calculista, que se comporta, essencialmente, de acordo com regras objetivas de conveniência [...] No conceito de representação consistente com esse ponto de vista, a imparcialidade subs-titui a verdade [...] Em tal situação de vácuo meta-histórico, não dispõe o indivíduo do piso firme necessário para que sua identidade se desenvolva. O homem moderno é o tolo enganado por uma fé mal colocada [...] Mas já que o centro ordenador de sua vida não está em parte alguma, sua identidade é de sua própria criação. Essa forma de cultivo da individualidade acaba em narcisismo [...] Em conseqüência, numa visão fluídica, com a interpretação da

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sociedade como um sistema de regras contratadas, o indivíduo é levado a compreender que tanto a sua conduta quanto a conduta dos outros é afetada por uma perspectiva. Torna-se um perspectivista [...] O perspectivismo permeia o pensamento de Maquiavel [...] [que] distorce sistematicamente a linguagem teórica por despojá-la de qualquer substância ética, prática em que Hobbes mais tarde seria sober-bo. Por exemplo, com Maquiavel, a prudência é vazia de conteúdo ético, é mero cálculo a serviço de interesses [...]. (Ramos, 1989, p. 53-59. Cf. Voegelin, 1952; Whitehead, 1967, p. 201, 240)

• relativismo programático (cf. García-Pablos de Molina, 1999, p. 90) — a noção de bem gera uma reificação da existência humana, com o “viver” se desnaturando na judicialização “vida”. Fenômeno que Ramos (1989, p. 50-52,
59) batizou de síndrome comportamentalista:

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O comportamento é uma forma de conduta que se baseia na racionalidade funcional ou na estimativa utilitária das conseqüências, uma capacidade — como assinalou corretamente Hobbes — que o ser humano tem em comum com os outros animais. Sua categoria mais importante é a conveniência. Em conseqüência, o comportamento é desprovido de conteúdo ético de validade geral. É um tipo de conduta mecanomórfica, ditada por imperativos exteriores. Pode ser avaliado como funcional ou efetivo e inclui-se, completamente, num mundo determinado apenas por causas eficientes. Em contraposição, a ação é própria de um agente que delibera sobre coisas porque está consciente de suas finalidades intrínsecas. Pelo reconhecimento dessas finalidades, a ação constitui uma forma ética de conduta. A eficiência social e organizacional é uma dimensão incidental e não fundamental da ação humana [...] A síndrome comportamentalista é uma disposição socialmente condicionada, que afeta a vida das pessoas quando estas confundem as

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regras e normas de operação peculiares a sistemas sociais episódicos com regras e normas de sua conduta como um todo [...] Exposto a um mundo infiltrado de relativismo moral, o indivíduo egocêntrico sente-se alienado da realidade e, para superar essa alienação, entrega-se a tipos formalistas de comportamento.

• sublimação bifocal (cf. Jescheck, 1993, p. 231) — predicado que abstraiu orto e filogeneticamente o bem, qual núcleo concretizador. E fê-lo uma indefinição, aporia ou variável holográfica, gravitando ora o monismo personalista, ora o coletivo, quer, ainda, um dualismo: “[...] a influência da evolução social sobre o atual desenvolvimento do direito penal gera a tendência de dissolução do conceito de bem jurídico, passando-se dos [...] bens jurídicos individuais aos mais vagos e intangíveis [...]” (Bechara, 2009, p. 21).

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Esta alternativa entre um conceito de bem jurídico preciso e crítico, mas alheio às necessidades da prática, e um conceito de bem jurídico prático e mais próximo da realidade, porém vago e inconsistente, agudiza-se ainda mais em uma sociedade moderna e complexa como a que temos atualmente. [...] enfrentam ao Direito Penal com a questão de se é possível limitar ainda sua missão de proteção do “Direito de outro”, ou é necessário passar a proteger instituições, unidades ou funções sociais, o que evidentemente significa uma maior indefinição do conceito de bem jurídico. (Hassemer e Conde, 1989, p. 106-107)

• pretensão totalitária (cf. Zaffaroni, 1989) — alquimia de que “[...] todo bem jurídico demanda uma tutela penal” (Id. Ibid., p. 41). Prometéica, a criminalização de quase tudo banaliza o Direito Penal, neutralizando-lhe a subsidiariedade inata:

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A esse respeito, observa-se, antes de mais nada, que até a segunda metade do século XX, o princípio de proteção de bens jurídicos, ou o conceito de bem jurídico, era utilizado como critério de crítica e limitação à intervenção...

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