Morfologia do Direito do Trabalho na Atualidade: um Diagnóstico Acerca das Relações de Trabalho e de Emprego

AutorLívia Mendes Moreira Miraglia
Páginas38-46

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Introdução

A realidade contemporânea exige que se extrapolem as fronteiras jurídicas para que se possa compreender as novas dinâmicas do mundo do trabalho. Nesse sentido é que se propõe a realização de um diálogo entre os pensamentos de Hannah Arendt e de Ricardo Antunes, a fim de contextualizar, filosófica e sociologicamente, as relações de trabalho no mundo contemporâneo.

Saliente-se, contudo, que de acordo com o corte metodológico proposto, não se pretende proceder a um exame profundo da filosofia ou da sociologia do trabalho. Elegem-se, como marco teórico, as obras de Hannah Arendt e de Ricardo Antunes, identificando-se os pontos comuns que possibilitem traçar um diagnóstico da realidade vigente, haja vista que ambos se propuseram a analisar o mundo do trabalho em sua complexidade filosófica e sociológica.

Estabelecido o diagnóstico das relações de trabalho no mundo contemporâneo, passa-se à análise das relações de trabalho e de emprego na vigência do pensamento neoliberal, com o objetivo de desconstruir algumas falácias propagadas pelos seus defensores, demonstrando-se a necessidade de afirmar a matriz constitucional de valorização do trabalho e da dignidade da pessoa humana para a consolidação do Estado Democrático de Direito.

Cabe salientar que o pensamento neoliberal pugna a desconstrução e a desregulamentação do mercado de trabalho, o que vai na contramão da finalidade do Estado Democrático de Direito de consolidação da Justiça social edificado na Constituição Federal de 1988.

1. O diagnóstico: a nova morfologia das relações de trabalho - uma breve análise do pensamento de Hannah Arendt e Ricardo Antunes

De acordo com Arendt, o ser humano só pode ter preservada a sua dignidade se reconhecido como "edificador de mundos" ou "coedificador de um mundo comum". A autora entende que a participação política e social deve ser garantida a todos como princípio fundamental de sua cidadania, o "direito a ter direitos", pois é por meio deste "direito de pertencer a uma comunidade política", dotado de igualdade e liberdade, que se permite a verdadeira edificação do espaço público comum1.

Para tanto, a autora analisa os conceitos de labor (labour), obra (work) e ação (vida activa)2.

Tal distinção pode ser compreendida da seguinte maneira: ao se referir ao labor, Arendt está tratando daquele trabalho necessário apenas para atender às necessidades vitais do ser humano. Ao tratar do trabalho ou obra, alude à capacidade do homem trabalhador de transformar a natureza e produzir um bem.

O trabalho como obra seria o trabalho concreto, criador de valores socialmente úteis, que transcendem a vida cotidiana. Já o trabalho como labor seria o trabalho alienado, expressão da execução cotidiana do trabalho3.

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Antunes utiliza-se das expressões ‘trabalho concreto e trabalho abstrato’. Segundo o autor, a primeira expressão diz respeito ao trabalho como "atividade útil, como atividade vital, como elemento fundante, protoforma de uma atividade humana". E nesse sentido não é possível vislumbrar uma sociedade sem trabalho, pois se trata de uma necessidade indispensável à existência humana4.

Já o trabalho abstrato refere-se ao trabalho estranhado, alienado, um trabalho incapaz de produzir coisas socialmente úteis e de transformar o seu criador5.

Assim, a participação social do homem no espaço público comum só seria possível por meio do seu trabalho concreto ou obra. Isso porque seria somente por meio deste trabalho que o ser humano poderia se desatrelar da ideia de mero provedor (labor), emancipando-se verdadeiramente pelo seu trabalho, pois ao realizar a obra, o homem se conecta, de fato, ao mundo. Passa a efetivamente pertencer à sociedade.

Cumpre salientar que Arendt busca rastrear as origens da moderna alienação "da Terra para o universo e do mundo para o si - mesmo"6.

A autora inicia sua obra tratando do homem enquanto animal laborans, definindo-o como aquele ser que trabalha apenas para suprir as suas necessidades vitais. Compara o trabalho do homem aos seus sistema biológico e conclui que em tal estágio, o homem em nada se diferencia dos demais animais7.

Na era moderna, o homem passa a ser compreendido como animal laborans, pois se torna capaz de transformar a "obra" em trabalho e os objetos de uso em de consumo. O trabalho, nesse momento, tem conotação negativa de pena, suavizado, no entanto, pela "alegria" de prover o próprio sustento8.

Cabe lembrar, todavia, que a "alegria de prover o próprio sustento" não ocorre em contextos de miséria e pobreza, pois nem isso se alcança com o labor.

Nesse sentido, também é a distinção de Marx acerca dos termos labour e work. O primeiro traz uma conotação negativa, referindo-se ao trabalho alienado, enquanto o segundo corresponde a uma concepção positiva do trabalho enquanto algo concreto que produz valores de uso socialmente úteis9.

Forçoso lembrar, todavia, que Arendt critica arduamente Marx por glorificar o trabalho como criador de todos os valores e criador, inclusive, do próprio homem. Rechaça ainda a ideia da instauração de uma sociedade de trabalhadores, pois isso geraria o totalitarismo, uma vez que, na verdade, segundo a autora, Marx pretendia livrar os trabalhadores da necessidade do "labor", o que é impossível10.

Segundo a autora, o homem que labora, embora possa estar cercado de outros, não conserva a sua pluralidade, não conseguindo construir ou participar do espaço público comum. Ele passa, inclusive, a se movimentar na mesma cadência que os demais e no mesmo ritmo das máquinas11.

Ocorre uma inversão do papel que deveria ser delegado às máquinas que deveriam servir ao homem evitando ou, ao menos, reduzindo a penosidade do labor. Mas é o próprio homem quem passa a servir à máquina.

A redenção desse aprisionamento do animal laborans é a capacidade humana do homo faber de fazer, fabricar, atenuando o fardo das labutas e erigindo ao mesmo tempo um mundo de durabilidade sem o qual a vida humana seguiria anonimamente12.

O homo faber é aquele responsável pela "obra". Essa se refere aos objetos de uso que constituem o mundo humano e sem os quais seria impossível existir. A obra também poderia se referir aos modelos de utilidade inventados para facilitar o labor e retirar a fadiga e o peso deste para o homem13.

O artesão seria um homo faber à medida que ele produz com as suas próprias mãos a "obra" que irá perdurar, muitas vezes, por um período superior à sua própria existência. O homo faber é senhor (ao contrário do animal laborans), pois domina a natureza e a transforma de acordo com a sua ideia inicial14.

A filosofia do homo faber é, segundo Arendt, o utilitarismo, o que poderia gerar a ausência de significado, uma vez que a cadeia interminável de meios e fins jamais chega a algum princípio que possa justificar a categoria de meios e fins (ou à própria utilidade). Dessa maneira, o "a fim de" torna-se o conteúdo do "em razão de", instituindo a utilidade como o próprio significado15.

O mundo, enquanto artifício humano, é a obra do homo faber. Não obstante produza a obra em isolamento, ele leva-a ao

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espaço público dos mercados de trocas, embrião da vita activa. O espaço público não se refere à vida política, haja vista que o homo faber e seu espaço são apolíticos (diferente do animal laborans, cujo estilo de vida é antipolítico)16.

Arendt alerta que, hoje, o ser humano está mais preocupado com a longevidade da própria vida do que com a realização de uma "obra". A autora destaca ainda o fato de que, atualmente, os objetos de uso transformaram-se em objetos de consumo, uma vez que não lhes permite mais se esgotar em face da durabilidade que lhe é inerente17.

Os desejos consumistas dos seres humanos fazem com que os bens de uso sejam vorazmente consumidos, permitindo a vitória do animal laborans que, por meio da divisão do trabalho, teve expropriado o seu "saber" sobre o "todo" da obra e hoje se vê compelido a laborar mais e mais para produzir partes de bens que outrora foram de uso. Não mais se permite que estes produtos se demorem no mundo tempo suficiente para se tornarem parte dele ou transcenderem o tempo de vida de seus produtores (características que deveriam ser do labor e não da obra)18.

Ou seja, ocorre uma inversão de valores no que tange aos conceitos cunhados por Arendt. A "obra" ou "trabalho" não é mais capaz de emancipar verdadeiramente o ser humano, haja vista que passa a se confundir com o "labor".

O homem que, de provedor havia passado a realizador da "obra", mestre da natureza, retorna ao seu status inicial de homo laborans. Dessa vez com um agravante: embora saiba como desenvolver a "obra", não é mais capaz de perceber a alienação que o circunda e o aprisiona novamente como mero provedor. O trabalho passa a ser tratado por meio de uma conotação negativa.

Explica Arendt que o ato de consumir a própria "obra" (as casas, os carros, dentre outros) permite a alienação do homem, haja vista que o "labor" provoca o seu isolamento e dificulta a sua participação na vita activa, impedindo-o sequer de pensar19.

Ensina Antunes que há uma ideia utópica e romântica de que "o trabalho avilta" e o tempo fora do trabalho "liberta". Assinala o autor que tal concepção desconsidera a "dimensão totalizante e abrangente do capital, que engloba desde a esfera da produção até o consumo, desde o plano da materialidade até o mundo das idealidades"20.

De acordo com Arendt, a marca do mundo contemporâneo é a progressiva indistinção entre os domínios privado e político, com a consequente ascensão do lar ou das atividades econômicas ao domínio público (quando este deveria ser um espaço livre de tais vaidades). As questões privadas transformam-se em interesse coletivo e...

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