Conceito e classificação da propriedade na pós-modernidade: a era das propriedades especiais

AutorJosé Isaac Pilati
CargoProfessor do Curso de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina.
Páginas89-119

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Introdução

A propriedade é a instituição central da civilização, não só por constituir o conjunto básico de valores2 - uma mentalidade, como diz Grossi3 - com que se orientam e pautam pessoas e coisas, mas também por determinar e materializar a estrutura com que historicamente se regem e reproduzem as relações de Estados e de indivíduos e de Sociedades.

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Na pós-modernidade4 confrontam-se dois modelos: o da proprieté napoleônica, reproduzida no art. 1228 do CCB - criticada pelo pioneiro discurso de função social de Duguit; e o das propriedades especiais constitucionais de 1988, que despontam sob a égide jurídica do coletivo e a aura política da participação.

A modernidade e as codificações trabalharam com um conceito estrito de propriedade, limitado ao âmbito das coisas corpóreas; o capital financeiro correu por fora desse âmbito, num buraco-negro jurídico que o punha a salvo de qualquer enquadramento ou compromisso de função social. Já a pós-modernidade deverá trabalhar com um conceito amplo de propriedade,5 incluindo todo poder patrimonial oponível ao grupo social. Isso coloca ao alcance da função social todo o poder, individual e social, seja ele político, econômico, de que natureza for. Com isso não é o conceito de propriedade que se modifica, mas o arcabouço, o paradigma.

Rodotá6 diz que a propriedade carrega um enigma, perante a desigualdade social renitente, que o Estado e os instrumentos da ordem jurídica não conseguem resolver. Este é o ponto que importa: até aonde vaiPage 91o mérito proprietário? Locke7 justifica a apropriação com fundamento no trabalho, porém não para açambarcar a terra e sim para usufruirmos. Assim é de início, arremata: Direito e conveniência andando juntos, sendo inútil, bem como desonesto, tomar demasiado, ou mais do que o necessário. O dinheiro também se justificaria nessa linha: como meio de tornar durável (com a troca) o perecível, pois o desperdício é igualmente condenável.

O liberalismo de Locke é preciso não só nesse aspecto, do mérito e dos limites da propriedade; ele baseia a relação de poder não no Estado como Hobbes;8 mas num estado de natureza anterior, que é de plena liberdade. Liberdade de indivíduos proprietários, que criam o Estado e participam do governo.9 As propostas de reforma que não observam este princípio basilar - da propriedade como instituição e substância - partem da perspectiva de que Estado e Direito são exteriores à propriedade; com isso tendem a serem conservadoras, porque o poder do Estado situa-se no lado da reação, enquanto o proprietário está no campo da ação, em tempo real.

A crise de hoje, sobretudo a ecológica, é reflexo de um novo momento da propriedade em sentido amplo: as velhas formas, jurídica e política, já não correspondem à substância. Esse descompasso entre substância e forma, confunde os eruditos do nosso tempo, que apesar do talento e da aplicação da maioria, perderam o senso de direção da força.10 O método que compartilham de modo geral como paradigma enreda-os na massa falida da modernidade, e eles pretendem solucionar a obsolescênciaPage 92jurídica com paliativos da velha ordem superada. Como se fosse possível tutelar o coletivo com instrumentos do CPC e sem rever o arcabouço institucional.

A realidade é que se está a manter uma ordem jurídica que se tornou inadequada à tutela dos interesses fundamentais da civilização e da espécie humana. A própria ONU11 anuncia a iminência da tragédia global por obra do homem;12 porém, não cuida da causa primeira que é a inaptidão do Estado autocrático, do qual ela mesma é a grande voz. Inaptidão de um sistema que não tem solução para a crise do modelo de desenvolvimento, que esgotou um planeta finito. Um sistema cujo conceito de propriedade é superado e exige nova conformação das instituições políticas e jurídicas; que resgate o coletivo como condição essencial do equilíbrio proprietário.

Porém, não significa romper com o princípio da corporiedade do Código Civil; e sim resgatar o arcabouço conceitual e estrutural da propriedade como instituto. Não é o caso de discutir se a propriedade é um fenômeno construído, histórico - na expressão de Nietzsche13Page 93contranatural - ou, se é eterno, fazendo parte da natureza humana. Ela incorpora e institucionaliza relação de luta, de poder, de dominação e subserviência. Não é campo neutro, nem objeto estático. O grande desafio do Direito pós-moderno, em sua função mediadora, consiste, basicamente, em definir-lhe estrutura e conceito em que o coletivo tenha o mesmo peso dado ao individual.

Nesta tarefa, o sistema romano de propriedade é contraponto de inspiração insuperável para o raciocínio pós-moderno; porque a propriedade romana era exercida sob o manto da democracia participativa, e não representativa. O público-privado romano é diferente do desenho da modernidade, justamente por isso, porque funciona sem a mediação de um ente como o Estado Moderno, separado deles. O dominium romano significa submissão de pessoas e bens ao pater familias, não a um proprietário individual, e as relações se travam em foros de um condomínio de romanos pater familias, que partilham o coletivo no plano religioso, jurídico e político.

Engels14 é um caso clássico de leitura moderna equivocada do modelo romano. O brilhante parceiro de Marx não consegue visualizar o coletivo não estatal de Roma e adota como método contrapor: à propriedade a tribo primitiva, de constituição gentílica e base familiar. O seu viés é de extinção da propriedade e perecimento de um Estado de classes; e com esses olhos examina a realidade romana, na qual identifica, porPage 94sua conta, a existência de: súditos do Estado; terras conquistadas pelo Estado; autêntica constituição de Estado,15 noções a que é levado pelo direcionamento teleológico do seu método, que persegue a eliminação da luta de classes.16

Sob esse ângulo de visão e de construção teórica, Engels está vendo Roma com os olhos da modernidade e seu paradigma;17 como se tivesse tido, como forma de governo, uma república representativa e autocrática; como se não tivesse sido a Roma da civitas - dos romanos com comitia, magistraturas18 e senado - e sim a república de Roma, pessoa jurídica separada dos cidadãos, manipulada por uma classe dominante. Nessa linha, seu direcionamento parece não ser no rumo de um coletivo de equilíbrio, de res populi, a ser restabelecido sob as garantias do Estado Democrático de Direito pós-moderno; e sim de um coletivo totalitário e utópico.

O prejuízo desse tipo de leitura das instituições romanas clássicas -como Estado Antigo - é inevitável: perde-se o elemento de equilíbrio entrePage 95particular/público/coletivo. Se a modernidade apropriou-se do coletivo em favor do particular, a pós-modernidade não pode ir para o outro extremo: anular o particular num coletivo de feição estatal. Pois tal tese chega, por linha transversa e ironicamente, ao mesmo resultado que combate, porque deságua num coletivo autocrático, com a mesma feição da modernidade. A pós-modernidade deverá instituir um sistema estruturado na tríplice dimensão que Roma ensinou: de coletivo x privado x estatal.19

A dimensão de república participativa que Roma vivenciou e que a pós-modernidade retoma no plano constitucional, repõe a questão a ser dialeticamente sintetizada: não eleminar a velha propriedade e o velho Estado, mas resgatá-los em plano superior, redefinindo-os. Reestruturá-los em nova sinergia como elementos da nova ordem social. Nova ordem que irá fundamentar e legitimar a propriedade na justiça do mérito, de capital e trabalho, em novo suum cuique tribuere,20 baseado no equilíbrio entre as esferas distintas: do privado (indivíduo), do público (Estado) e do coletivo (Sociedade). Mirando-se no espelho da Antiguidade, recompor a face.

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1 Propriedade comum e especial: dois perfis e um paradigma a construir

O constitucionalismo brasileiro contemporâneo consagra dois sistemas, que se fundem na pós-modernidade; o da propriedade comum, que possui princípios e regras próprias e representa a grande conquista moderna da liberdade individual perante o Estado, o público, e os demais indivíduos; e o outro, materializado nas propriedades especiais, que se pautam por outras normas de exercício e tutela, orientadas pelo coletivo e pela função social. As propriedades de uma e de outra categoria possuem titular, objeto, exercício e tutela diferenciados, mas convivem em harmonia, num sistema, assim, muito mais complexo do que o romano.

1. 1 A propriedade comum

A propriedade comum é a de caráter dominial, regida pelo Código Civil (art. 1228), que se contrapõe como sistema, tradicionalmente, à propriedade pública, regida pelo direito administrativo. Estrutura-se e classifica-se pelas categorias tradicionais: móvel e imóvel, plena e restrita, perpétua e resolúvel. É avessa ao condomínio, que tolera como uma situação transitória; tem na posse um instrumento avançado de defesa (interditos) e nas ações petitórias (reivindicatória, negatória) o instrumento adequado de tutela; e desdobra-se em direitos reais limitados de gozo (que se tutelam por interditos e ações confessórias) e de garantia (créditos privilegiados).

Atua reduzindo o universo subjetivo aos dois interlocutores: indivíduo proprietário e Estado pessoa. No plano do objeto, restringe os bens jurídicos às duas categorias: públicos e privados. À base desses elementos, o direito subjetivo da dominialidade...

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