A Construção do Direito Social à Educação das Minorias Étnico-Raciais nos Países da Unasul - Casos: Brasil e Bolívia

AutorFernando Basto Ferraz - Elizabeth Alice Barbosa Silva de Araujo - William Paiva Marques Júnior
Páginas201-216

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Introdução

Os recentes estudos sobre a integração na Amé-rica Latina têm focalizado na UNASUL como um importante passo na consolidação dos interesses econômicos, sociais e político-institucionais da região. O tratado assinado pelos 12 países latino-america-nos em 2008 visa ampliar as propostas de integração já implementadas, em particular, pelo Mercado Comum do Sul - MERCOSUL e pela Comunidade Andina das Nações - CAN, contradizendo as teses que apresentam as características de alguns países latino-americanos como algo particular a cada socie-dade em que se manifestam, sem uma comunicação mais significativa com as demais.

Em geral, as teses sobre integração latino-americana têm enfrentado o incômodo reconhecimento das particularidades sociais, econômicas e políticas de cada Estado no processo de construção democrática interna, as quais têm apresentado uma resistência externa aos modelos de integração tentados ao longo da história.

Essas teses disassociam, muitas vezes, as crises político-institucionais internas à realidade comum de alguns Estados do Sul do continente, bem como a outros fatores de influência externa, que talvez, pudessem trazer uma unidade teórica na explicação dessa realidade.1

De fato, fatores como patrimonialismo, latifúndio, ausência de distribuição de riquezas, inexperiência com governos democráticos apropriados para a região, importação de valores sociojurídicos, dificuldades legais e políticas de se coibir os abusos do poder, dificuldade de uma integração econômica mais eficiente, ou de uma economia que traga benefícios a todos, e a presença de um militarismo persis

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tente, comprovam não apenas os problemas internos de cada sociedade sul-americana em romper com as elites políticas e econômicas que impedem a ampliação dos benefícios democráticos, como também uma experiência mais comum entre os Estados, de forte influência externa na autodeterminação deles.

Este artigo pretende analisar a proposta de integração latino-americana trazida pelo Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas, como uma tentativa de dar uma nova versão às teses sobre a América Latina. Busca-se analisar os avanços político-institucionais comuns, que têm promovido transformações sociais profundas, vivenciadas por alguns países latino americanos como Bolívia, Brasil. Esses países vêm recriando o papel do Estado nas suas relações com a sociedade através de um mode-lo constitucional de ampliação dos direitos sociais e dos sujeitos a quem eles pertencem, e, consequentemente, de ampliação da cidadania.

O objetivo mais específico do trabalho é analisar os modelos de educação inclusivas para minorias como um direito social trazido pelo neoconstitucionalismo adotado por esses países. Embora suas diferenças internas possam atribuir características específicas a essas sociedades, seus modelos constitucionais recentemente adotados, demonstram uma unidade de políticas inclusivas para minorias como uma força constitucional nova, real e irreversível, em busca de um novo modelo de sociabilidade plural. O clima teórico e prático em que se implementam essas políticas vêm provocando um repensar nas categorias mais fundamentais de formação do sujeito, que vão desde as propostas universais de construção dos seus direitos sociais, nos quais a educação se insere, até o modelo de cidadania e, consequentemente, de democracia, em que ele pretende atuar na sua realidade concreta.

1. Políticas de inclusão

Longe de ter uma conotação puramente teórico-científica, as interpretações sobre o processo de inclusão social e sobre o impacto que vêm causando nas instituições políticas, jurídicas e educacionais dos países latino-americanos, parecem absorver dialeticamente o mesmo aspecto ideológico que circunda esse fenômeno universal. O arranjo ideológico existe a partir do momento em que se revela e questiona a imagem de um mundo homogêneo e integrado, desenvolvido a par do concreto processo de fragmentação, desintegração e desarticulação política de indivíduos e grupos que o acompanha.

A própria premissa, da qual muitos educadores partiam, de que o sistema de políticas universalistas educacionais era mais justo do que qualquer subsistema de políticas mais localizadas, e, por conta disso, estas deviam sempre sucumbir àquelas, silenciava a realidade de que os modelos universais de políticas públicas educacionais no Estado Liberal eram, muitas vezes, usados para ilustrar falsamente a abrangência de seu impacto de transformação, integração e uniformização do bem-estar dos sujeitos. Por isso, o desencadeamento dessa ideologia ocorria sem preocupação alguma com o rastro de pobreza, abandono social, desigualdade e exclusão, legado histórico verificado em cada país da região.2

Hoje, este enfoque tem sido substituído por um contexto de reformulação dessas políticas autoritárias, sugerindo uma reflexão mais ética e política sobre novos modelos de inclusão, de modo a interpretarem a educação como um direito, um recurso e um bem público também subjetivado às minorias. Isso não significa apenas a garantia do acesso aos grupos minoritários à educação, mas, principalmente, a certeza jurídica e política de que, com a inclusão desses grupos no espaço público educacional, as escolas e educadores de todos os níveis estarão criando novos acordos de produção, construção e promoção de novos conhecimentos.3

2. subordinação e exclusão social na américa latina

A exclusão social das minorias tem sido uma realidade nos países latino-americanos. No Brasil, em particular, a situação ainda é mais evidente devido a algumas características sociais e político-institucionais no país que favoreceram o desenvolvimento de políticas uniformes, abstratas e universalistas sem apresentar maior resistência por parte dos excluídos. Dentre estas características, estava o patrimonialismo como forma de dominação de tipo tradicional, organizando as relações sociais em critérios de lealdade e lucro pessoal, ao invés de crité-

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rios racionais.4 Por isso, proporcionava uma baixa expectativa de que os governantes agiriam em defesa do interesse de todos através de suas políticas públicas. Diante de um sistema de poder imprevisível e personalístico, os grupos minoritários, em vez de buscar o reconhecimento de suas diferentes necessidades e, consequentemente, de seus direitos, eram acostumados a buscar favores como forma de inclusão pessoal.5

Isso sem mencionar a estrutura de poder que também se desenvolvia por meio de uma ordem social e política burguesa movida, em geral, por duas classes: de um lado, os proprietários rurais, a classe abastada dos senhores de engenho e fazenda, que sempre coincidiram no poder à medida que as relações patronais da microestrutura não podiam ser definitivamente substituídas pelas relações racionais da macroestrutura responsáveis pelas políticas universais liberais.6 E, de outro, a massa da população espúria dos trabalhadores do campo, escravos e semi-livres, para quem tais políticas apenas chegavam através de doses homeopáticas, representando, muito mais o resultado heróico de um esforço individual, do que mesmo o aproveitamento real dessas políticas por um número significativo de pessoas da mesma classe.

Fundamental na compreensão desse quadro eram as relações de escravidão que durante muito tempo favoreceram a distribuição de bens, recursos e direitos segundo uma ordem hierárquica, onde os superiores tinham direitos como privilégios legais e políticos que os inferiores não tinham, cabendo, a estes, apenas a conformidade ou a sucumbência àquilo que as relações de raça e poder definiam como igualável ou não na sociedade.7

Mesmo com os direitos liberais proclamados nas constituições republicanas em defesa da igual-dade de todos, e com o país procurando desenvolver uma economia cada vez mais expansionista e modernizada, na prática, a educação, o dinheiro e as formas de cultura dominantes continuavam a determinar o acesso a esses direitos. Assim é que as minorias étnico-raciais alcançaram liberdade formal sem, contudo, realizarem até o final do século passado, um exercício mais significativo de cidadania, quer fosse ela de ordem econômica, política ou cultural.8

Outra característica bem marcante nesta última metade do século passado adveio dos governos autoritários, quando os países latino-americanos submeteram-se à instalação de regimes militares, ressaltando mais ainda a forma excludente de poder. A tomada do poder pelos militares gerou não só uma crise de instabilidade político-institucional na região, por meio do chamado "efeito dominó", como também acirrou a crise de legitimidade das políticas universalistas. Reagindo à doutrina marxista que fomentava movimentos de transformação social, países como Paraguai (1954), Brasil (1964), Peru (1968), Bolívia (1971), Uruguai (1973), Chile (1973), e Argentina (1976), cederam a um mode-lo político autoritário e antijurídico, ao qual Alfred Stephan denominou de "profissionalismo militar".9

Apoiados por uma política geral de segurança nacional, os militares apropriaram-se dos valores democráticos ocidentais de "igualdade e liberdade", forjando a legitimidade de uma política nacional integradora que prometia desenvolvimento social com base na ordem e supressão de demandas diferenciadas. Isso repercutiu diretamente no problema da exclusão social que algumas minorias vinham sofrendo, as quais não tinham muita importância no cenário político-institucional de tais países, a não ser pelo fato de se reprimir qualquer demanda ressurgente que se assemelhasse à luta pelos direitos civis vivenciada à mesma época...

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